No lado de fora, é outono. Pelos portões abertos eu posso ver corvos crocitando nos galhos esguios e entrelaçados de bordos, o jardim fervilhando de cores quentes em tons terrosos e dourados. Entre os bordos, arbustos densos exibem um caleidoscópio de cores, suas bagas rubras brilhando como gemas reluzentes.
A ironia me faz dar um sorriso duro. Graças ao Jardim Transmutador eu posso ter uma pequena amostra do Bosque de Outono, depois que minha viagem com Nim saiu completamente dos eixos. Isso vai ter que bastar por enquanto; ou para sempre.
Folhas cobrem o vasto pátio interno, com certeza carregadas até aqui pelo vento. As folhas craquelam e rumorejam quando dou os primeiros passos sobre elas, estendendo uma distância intencional entre mim e o castelo. Independente de minha resistência natural, é indiscutivelmente menos complicado articular meus pensamentos quando não estou perto de Joshua. Sem poder vê-lo, sem ter seu toque físico constante e sem ouvir seus discursos dúbios, nada me impede de focar na crise.
Hei-a: já é de manhã, Yann ainda está com Chen, eu não estou em posse do segundo totem, não sei onde Yann queria me encontrar, e ao invés de me ajudar ou então de me dar as respostas necessárias para pôr um fim a esse colapso de uma vez por todas, Joshua — Joshua, a Trindade Real, o filho do Criador, que é conhecedor de tudo e de todos, que está em todos os lugares o tempo todo — se esconde atrás de enigmas e preleções fora de contexto, e com que intuito? Me despistar? Me fazer de idiota?
Sento-me na mureta da fonte no meio do pátio e novamente levo a mão à água imutavelmente quente, umedeço o rosto e massageio as têmporas. Vir aqui foi uma péssima ideia, uma verdadeira perda de tempo. A Trindade Real não está do nosso lado. Não está do meu lado — e sim contra mim. Vejo isso agora. Queira eu ou não, faço parte de um jogo. No momento sou apenas um peão, um pássaro implume, mas se chegar ao outro lado do tabuleiro...
Afinal, não é para isso que existo? Não é para isso que fui planejado: alcançar a supremacia das capacidades de Yann e tomar o trono de Joshua para que, através de mim, Fidis possua Halel?
É claro que Joshua não pode permitir que isso se concretize. Porque isso, minha ascensão ao trono como aliado de Fidis e um legatário melhor e mais egrégio de Yann, se bem sucedida, talvez viesse a significar não só o fim da soberania de Elim como também o início da Era das Trevas em Halel, sabe-se lá quais forem as intenções de Fidis para este mundo.
Organizar os fatos por essa lógica é tão estranho. Posso estar com raiva de Joshua agora, mas não me imagino rebelando-me contra ele, sucumbindo à força mística presente em mim e agindo em nome de Fidis para destroná-lo.
Nenhuma dessas coisas parece ser possível. E talvez não sejam; talvez o plano de Fidis seja tão imperfeito quanto ela.
Torço a boca em rejeição a essa ideia. Se o conhecimento que tenho sobre Joshua é vago, mais vago ainda é o que tenho sobre Fidis. Eu devia ter perguntado a Joshua sobre ela, quem é (ou o que é), de onde surgiu. Assim, quem sabe, eu me sentiria mais confiante para conjecturar a seu respeito, porque agora não acho justo denominá-la imperfeita.
Ou mesmo má, pensando bem.
(Me encontre no primeiro lugar.)
(Você é esperto, vai descobrir o que quero dizer.)
Chen. O Encantador o levou. Ele o levou da mesma forma que levou as trinta e uma crianças para a Ilha dos Letíferos, quase quatro décadas atrás neste mundo. Trinta e uma crianças foram mortas por meu avô, sangue lhes foi derramado, e isso só pode ser mal, não é?
Sim, é claro. Isso é terrivelmente mal. Não há discussão.
Mas de onde parte a maldade: de quem a permite acontecer ou de quem a pratica?
VOCÊ ESTÁ LENDO
Neblina
FantasyEm um canto distante no universo, oculto no plano imaterial, um mundo marcado por um vasto continente dividido em quatro bosques é governado pelo filho do Criador. Seus habitantes, dotados de dons elementais, vivem em paralelo com o Mundo Sombrio. N...