25. PRECIPITAÇÃO

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No minuto que se segue, somente o sussurro delicado dos cristais de gelo caindo no telhado do coreto e o fluir do vento pelo jardim se fazem ouvir. Agora somos quatro figuras imóveis, dois pares separados por alguns metros de neve. O jogo está montado, as peças estão posicionadas no tabuleiro, mas ninguém se dispõe a jogar. Enquanto o silêncio se delonga, fico tentando encontrar alguma coerência no que acabou de ser exposto. Pode o Encantador estar mentindo, ou pode Nim ter conseguido enganá-lo e o levado a acreditar que é um mestiço absoluto? Como? E por quê? Estou tentando encontrar desculpas.

O problema é que, por um lado, isso faz sentido. De que outra forma explicar as estranhas conveniências que nos permitiram escapar quase sempre ilesos das ameaças a que fomos acometidos do que Nim ter feito uso de seus dons para afugentá-las? Por outro lado, não faz sentido nenhum — se ele tem dons, e mais, se é mesmo um mestiço absoluto, por que manter isso em segredo, sabendo dos benefícios que isso traria a sua família e a sua vida em geral?

Talvez ele tenha descoberto há pouco tempo. Talvez seus dons tenham se revelado por acaso em algum momento do último mês e ele quisesse mais tempo para absorver a nova realidade antes de compartilhá-la. Ter passado a vida toda sob o título de inábil, ter sofrido e visto sua família sofrer com isso, pode tê-lo deixado inseguro sobre como agir daqui para a frente. Concluo que essa é a resposta que quero. A resposta que consigo aceitar.

— Explique devagar — digo por fim, interceptando o silêncio.

O Encantador dá um tapinha nas costas de Nim.

— Mostre para nós — ele diz, entusiasmado. Nim nega com a cabeça.

— Não tenho nada para mostrar que você já não tenha visto pelos olhos de seus monstros.

Yann rosna e segura Nim pelo pescoço, levantando-o do chão do mesmo jeito que fez comigo na clareira. Mei arfa e ergue a mão livre, pronta para agir, mas eu a detenho.

— Não — sussurro-lhe. Ela me olha sem acreditar. — Eu preciso ver.

Nim se desfaz do o arco e da aljava, deixando os objetos caírem na neve, e segura o pulso de Yann numa tentativa de se estabilizar. Yann não afrouxa o aperto, e pelo som esganiçado que Nim faz, acredito que ele o acirre mais ainda.

— Você vai mostrar para nós — sibila. — Senão seus companheiros vão provar uma quantidade nada agradável do veneno de meus corvos.

E atira Nim no chão como se ele fosse um frisbee.

Nim tosse, passa a mão no pescoço, engole em seco, respira fundo. Quando se orienta, a primeira coisa que faz é dar uma espiada no coreto, seus olhos parando em mim. A expressão envergonhada me comove, e me vejo querendo correr até ele, acudi-lo, pensar em um novo plano — ou pôr em prática a minha ideia de despistar o Encantador com o relógio de bolso. Mas não me permito manifestar nenhuma dessas vontades, nem de deixá-las perceptíveis em meus traços, de modo que o olhar que devolvo a ele é frio e duro.

Porque um olhar frio e duro é tudo que posso oferecer agora.

Lembro-me da primeira vez que o vi, o garoto irritadiço que atirou uma flecha numa borboleta coarctar para me salvar. O garoto que me garantiu que eu podia confiar nele. Parece haver um mundo de distância entre aquele garoto e este.

Com cuidado, Nim se coloca de pé, limpa a neve das roupas e dos membros sem pressa e olha para o céu — o céu abdicado de nuvens que sopra a pureza rodopiante em forma de algodão no alto da montanha. Ele fecha os olhos e respira profundamente, o peito inflando sob a camisa. Me pergunto como é para ele respirar o ar invernal. Sem o ardor ácido do frio, o que deve sobrar? Talvez o aroma doce do verde glacial, da natureza congelada.

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