Capítulo 3

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Não sei onde estou ou quem sou, apenas sinto que não estou sozinho aqui. Meu corpo se tornou leve. Na verdade não sei se ainda pertenço a algum tipo de corpo, se estou realmente vivo ou se esta é apenas minha consciência pairando nalgum lugar desconhecido por mim. De qualquer forma, consigo sentir a calmaria habitando no ar.

"Você chegou, pequeno garoto. Não sabe tamanha felicidade que sinto em te ver"

Você... eu te conheço. É a mesma sensação de ler uma frase do livro que peguei. Foi você quem me trouxe até aqui, certo? Disse que me explicaria tudo se eu viesse. Pois bem, comece.

"Vejo que mesmo por aqui ainda mantém sua consciência intacta. Perfeito, vou lhe explicar o que está acontecendo, mas não tudo. Não agora."

Não agora? Está brincando com minha cara? Não sei quem você é, não sei onde estou e nem o que vai acontecer daqui para frente e você me diz que vai me esconder informações? Sabe o risco que corri vindo para esses lados a essa hora da madrugada?

"Oh, calma, calma. Disse que por enquanto não posso te deixar a par de tudo, mas tenha certeza que o essencial para este momento você saberá em detalhes. Em breve, posso te contar a história por completo, mas vamos por partes, ok?"

Claro, claro. Por partes. Não consigo entender como vim parar aqui, ou o que sequer "aqui" significa. Então me explique. Te passarei a palavra.

"A história em si é um pouco longa, mas vamos apenas dizer que estou a algum tempo esperando por alguém que me encontrasse. Sim, eu falo por você através deste livro, mas não sou ele, tenho meu próprio corpo que, por sinal, é bem melhor que uma pilha de folhas. Fato é que meu trabalho aqui é te ajudar a enxergar novos caminhos pelos quais nunca nem sequer sonhou."

Então você seria uma espécie de mago? Algum feiticeiro que consegue me ver através do livro e me lançar feitiços hipnotizantes? Se for isso, sinto lhe informar, mas não preciso de seus serviços.

"Vocês humanos... o que se passa nesses noticiários para pensar tanta baboseira? Não sou mago nem feiticeiro, muito menos sou deste mundo. Não sei se consegue entender, mas estou muito além dos limites tidos como normais. Sou celestial."

Celestial, claro. Então você seria um anjo? Oh, já sei! Você é meu anjo da guarda. Por isso nada de mal me aconteceu no caminho para cá. Mas entre nós, por que um beco escuro? Não seria mais fácil aparecer em meus sonhos enquanto durmo confortavelmente em minha cama?

"Nunca te protegí de nada, por mim você já estaria morto. Espero um dia ter a sorte de ver isto de perto. Mas esta não é a questão. O que está em jogo aqui é sua própria vida. Seu destino."

Meu destino? O que minha vida tem a ver com você? Te conheci hoje, a algumas horas atrás, e já vem me dizendo que sabe coisas sobre minha vida? Se isto for algum tipo de piada pare por aqui!

"Eu não sou do tipo que perde tempo com piadinhas sobre pessoas tão chatas como você, não me insulte! Eu falo sério quando digo que estou aqui por sua causa. Pedi que viesse até aqui porque é um local mais isolado, logo posso me sentir mais à vontade. Preciso que me escute com atenção e pare de reclamar a cada palavra que digo!"

Espero não ter que conviver com você por muito tempo, já consigo ver que não nos damos bem. Mas ok, fale logo o que quer falar e me deixe ir embora.

"Obrigado. Pois bem, do que posso lhe revelar agora, vou apenas falar que no momento em que você encostou neste livro uma espécie de sinal foi tocado em minha casa, me alertando de algo que a muito tempo não acontecia. Isso me chamou a atenção, então usei as páginas em branco do livro para entrar em contato antes que você perdesse o interesse e o guardasse novamente. O chamei e insisti em te encontrar porque queria te conhecer de perto."

Então você também está me conhecendo agora? Bem, isso me alivia um pouco a tensão. Mas sabe, conversar com uma voz que se diz um ser celestial enquanto estou num completo vazio não ajuda muito as coisas. Não poderíamos tornar isto um pouco mais... normal?

"Normal? Pois bem, nós podemos fazer isto! E me desculpe pela forma afobada que te fiz entrar em transe, eu apenas precisava garantir que você não fugiria de medo. Agora, com tudo esclarecido, peço que respire fundo, lentamente. Vou te trazer de volta."

Eu fecho o que penso ser meus olhos, respiro fundo e tento me acalmar. Aos poucos, vou sentindo meu corpo novamente, como se estivesse acordando de um profundo sono. Consigo sentir meus dedos, pernas e braços, e isso se estende pelo meu corpo inteiro. Quando finalmente consigo abrir meus olhos, percebo que estou jogado no chão, no meio da rua úmida de uma leve chuva que cai. Olho ao redor e sinto alívio quando percebo que o livro, de alguma forma, amorteceu o contato direto de minha cabeça contra o chão. Começo a me levantar com dificuldade, ficando um pouco curvado e zonzo quando apoio o peso de meu corpo nos pés fracos. Retomo o fôlego de cabeça baixa, pensando que tudo aquilo foi apenas um sonho, mas logo percebo que estou na rua, de frente para o beco escuro e sombrio de antes. Quando tomo coragem e olho para frente, bem no fundo do beco, mesmo escuro, consigo ver uma silhueta perfeita. Um ser que parece ter o dobro de meu tamanho, perfeitamente humano, mas com uma aura... demoníaca? Apuro a visão a fim de confirmar o que vejo, mas me arrependo logo em seguida. Consigo ver claramente um rosto olhando diretamente para mim. Se antes eu estava no paraíso, agora eu estou definitivamente no inferno.

Sinto um frio na espinha pior que o de quando havia chegado aqui, mas agora o medo me paralisou. Eu devo ter ficado um minuto parado, olhando para frente, tentando me manter de pé e suando frio, apenas observando, com a mente em branco. Volto ao raciocínio quando o ser começa a se mover em minha direção, lentamente. Meu instinto me diz para correr e abandonar o local, mas a força de meu corpo ainda não voltou completamente, de modo que quando tento dar alguns passos para trás, minhas pernas logo se amolecem e eu novamente caio no chão. Vou me arrastando para trás usando os braços, ainda com a visão na criatura que se aproxima cada vez mais rápido, mas meu coração para quando senti a parede em minhas costas, fria e úmida. A esta altura, minhas roupas já estavam molhadas com a água que vinha da chuva, mas o pavor em meu corpo não me permitiu sentir temperatura alguma. Eu apenas cessei os movimentos de meu corpo, torcendo para que, de alguma forma, eu saísse vivo daquele lugar. Quando a criatura finalmente se aproximou o suficiente para que a luz da rua iluminasse sua silhueta parcialmente, eu apenas pude escutar sua doce voz ressoando em minha mente.

"O remédio para o tédio é a liberdade. Liberte-se de si mesmo e se sentirá completo. Foi um prazer conhecê-lo, garoto, nos veremos em breve."

E novamente na escuridão, o ser celestial se foi, me deixando sozinho naquela rua deserta, úmida, e fria. Apenas eu e aquele maldito livro.

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