Interlúdio - A Coruja e as Folhas de Chá

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Isemberd acordava de manhã quase junto do nascer do sol. Despertava com facilidade e se levantava rápido. Arrumava a cama, com cuidado para não acordar Gillibert por acidente e geralmente falhava. A coruja se agitava um pouco, abrindo lentamente os olhos enormes, e saía voando pelo quarto, enquanto seu guardião ia ao cômodo reservado para banhos, passando pelo corredor.

Depois da ida do dia anterior à Otterwesh, ele não sentia nenhuma vontade de sair de casa, talvez por simplesmente poder apreciar a escolha. Ou pelo fato de ter um lar para chamar de seu pela primeira vez. Enquanto Gillibert estava fora, ele tomava um banho gelado, trocava suas roupas e limpava seus óculos.

O rapaz descia para a cozinha, acenando com os dedos cruzados e brilhando em amarelo, a tempo de ver as janelas se abrindo. Sentava-se por uns minutos à mesa, seus utensílios de escrita levitando até ele. Tinteiro, uma pena, um livro, que ele abria gentilmente com as mãos.

Isemberd encontrava uma página em branco, e escrevia por alguns minutos, de expressão concentrada, às vezes parando para esfregar o rosto, como se o processo fosse cansativo ou doloroso. Escrevia até dar-se por satisfeito.

Gillibert voltara, naquele dia a tempo de ver seu mestre fechar o diário, secar a pena e guardar a tinta, com um grau de deliberação que era quase ritualístico. Isemberd então encarava a coruja com ar sério e distante. Dava-lhe algum cumprimento curto, antes da criatura mágica se animar e voar ao redor dele.

Ao longo daquele dia tranquilo, ele seguiu seus afazeres para que os negócios na cidade começassem a acontecer. Preparou encomendas, listas e se preparou para mais consertos a fazer pela grande e velha casa.

Perto da hora do almoço, o mago estava armazenando as ervas que havia adquirido no dia anterior, quando Gillibert pousou perto dele, ao lado do armário onde Isemberd mantinha alguns ingredientes.

— Mestre, trouxe mais folhinhas! — ele disse.

O mago se aproximou do filhote e verificou as folhas. Estavam frescas, e ele reconheceu algumas delas. Eram poucas, Gillibert as havia trazido com as garras, porém, eram algumas das mesmas que ele tinha ali, no armário.

— Você as reconhece como? — ele perguntou, separando-as diante da coruja.

Isemberd tinha muita curiosidade em testar o quão inteligente Gillibert era, mas ele se continha. O pequeno animal lembrava uma criança, porém, às vezes ele demonstrava lampejos de sabedoria e perspicácia que o fascinavam e preocupavam. Lembravam-no de como as outras corujas criadas para a guerra em Sorin eram perigosamente espertas.

— Essa e essa têm um cheirinho bom. — Gillibert respondeu. — Essa tem um formato esquisito depois que seca. E essa outra... Espera...

Ele arregalou os olhos, se aproximando da folha.

— Ah, não, é grama!

Isemberd apanhou uma das folhas e mostrou ao filhote.

— Não lembro de ter te mostrado ela antes de secar. — Seu tom era sério e ele falava baixo, encarando Gillibert nos olhos.

A coruja mágica bicou a folha de leve.

— Eu vi quando estávamos ontem na casinha da senhora que vende folhas ontem! É igualzinha.

Ele se inclinou para observar a folha novamente.

— É! Certeza que é ela mesma.

Isemberd assentiu.

— De fato.

Gillibert piou, erguendo a cabeça satisfeito.

— Vamos colocar essas daqui pra secar. — com sentimentos controversos a respeito, o mago acrescentou: — E aquelas ali fervemos junto da água.

— O que o senhor gosta tanto no chá, mestre? — Gillibert perguntou, de súbito.

— Uma boa pergunta — o mago constatou, abrindo o armário e colocando as folhas em recipientes apropriados para cada tipo. — acho que em algum momento se tornou algo que me ajuda... a não pensar demais.

A coruja voou até o ombro de seu guardião.

— Acho que entendo.

O mago afagou a cabeça do filhote.

— Quer provar um pouco?

— Eu posso?

O mago franziu a testa.

— Não. Mudei de ideia...

A coruja voou ao redor dele por um momento, tão veloz que pareceu um borrão aos olhos do mago.

— Ah, mestre, por favor!

Isemberd meneou a cabeça.

— Sem leite. Não vai te fazer bem.

— Sim!

Os dois tiveram um dia tranquilo, preenchido com trivialidades, como guardar as compras do dia anterior, retirar uma porta danificada e dividindo um chá que o filhote de coruja prontamente detestou.

Tomo Sombrio - Terceira EstrelaOnde histórias criam vida. Descubra agora