Interlúdio - Espíritos

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 — Mestre, por que de vez em quando seus olhos brilham e eu escuto vozes?

Isemberd parou de escrever rabiscar algo um pergaminho velho e encarou a coruja.

— Vozes?

— Sim. Uns... suspiros, esquisitos. Como se alguém estivesse falando muito baixinho e não desse pra entender nada.

Os olhos do mago se estreitaram de um jeito ameaçador. Depois de uma pausa reflexiva, ele indagou:

— Algum lugar da casa em especial?

Gillibert inclinou a cabeça, se encolhendo um pouco.

— Perto do nosso quarto.

Isemberd suspirou. Voltou seu olhar concentrado para o papel, enquanto pensava e terminava uma anotação peculiar no canto do pergaminho. Deixou o papel sobre a mesa e apanhou uma folha em branco, gesticulando em seguida para que Gillibert se aproximasse. A coruja voou até ele, pousando por perto para observar.

O mago fez um esboço bastante rudimentar da casa, da clareira e de parte da floresta.

— Aqui — ele apontou — somos nós.

— Certo mestre!

— Nosso quarto é aqui. — ele marcou um x no local e Gillibert arregalou os olhos. — Se você está ouvindo vozes, só pode estar vindo...

Ele fez um gesto na direção do coração do bosque.

— Da mata mais profunda.

— Não entendi.

— Espíritos não podem falar conosco, como eu e você falamos. Eles precisam usar meios diferentes e esquisitos.

A coruja o encarou.

— Espíritos estão tentando falar comigo?

Antes que o mago pudesse explicar, Gillibert piscou duas vezes e soltou um pio alto, chegando na conclusão correta sozinho:

— Espera! Comigo não! Com o senhor! O que eles estão dizendo?

Isemberd meneou a cabeça.

— Se acalme. — ele desenhou algumas árvores ao redor da casa. — Fiz um acordo com um espírito do bosque. Ela concordou em me avisar de qualquer perigo que se aproximar da mata e em troca vou fazer uns favores pra ela.

Em algumas árvores, ele desenhou olhos abertos.

— Essas árvores aqui marcam o que ela disse que é nosso território. Posso usá-las para um feitiço. E outros espíritos não podem chegar perto sem ela saber.

O filhote pareceu confuso por um momento.

— Ela é uma moça?

— Se apresentou como uma. — ele esclareceu. — Mas com espíritos nunca podemos confiar. Só nos acordos.

Os dois passaram mais alguns minutos detalhando melhor o mapa rústico da casa.

— Os espíritos não podem interferir no nosso mundo sem meios especiais pra isso. — Isemberd explicou — Mas eles podem ver o que acontece se quiserem.

Ele talhou a ponta do dedo na pena, deixou cair uma gota de sangue sobre uma folha de papel limpa. Desenhou um sinal cruzado que lembrava um laço. Ao longo da linha, ele marcou seis pequenas estrelas, e depois desenhou duas maiores, no topo e na base do laço. Ergueu a mão num sinal mágico diferente, com indicador, anelar e polegar juntos num círculo, os dedos restantes bastante abertos.

— E, com alguns truques da constelação dos espíritos, nós podemos ver coisas juntos. — Ele concluiu, usando a mão livre para afagar a cabeça da coruja.

Os olhos do mago e do filhote se cobriram de uma membrana púrpura. O sangue de Isemberd na folha brilhava em branco e emitia calor como se estivesse fervendo.

— Estamos enxergando pelo reino dos espíritos. — Ele explicou.

— Uau! Mestre! Que divertido! — Gillibert disse, piscando várias vezes.

Isemberd os fez observar a casa de todas as quatro árvores que o espírito havia permitido que ele usasse.

— Dá um pouco de dor de cabeça. — O mago resmungou. — Mas é bem útil.

— Mestre... tem algo na nossa janela.

— Ignore.

— Mas...

— Confie em mim. Deixe-o lá.

Gillibert piou.

— É um homem, de cabelo grande e cara de bravo!

O mago pigarreou e ergueu a mão com o dedo furado, cruzando um dedo sobre o outro e depois abrindo-a em forma de garra. O feitiço se desfez e ele balançou a cabeça, com uma careta. A coruja não pareceu se incomodar nem um pouco com seu sentido da visão voltando ao normal.

— Não se preocupe, espíritos não podem nos fazer mal. Principalmente comigo aqui.

Gillibert se chacoalhou soltando penas e piando, nervoso.

— Não gosto de ter eles perto do Mestre! Na janelinha lá de cima! Que audácia! Quando vamos limpar por lá?

Isemberd riu, o que era um evento tão raro que a coruja arregalou os olhos e pareceu se acalmar só com isso.

— Eles me evitam sempre que podem. — ele explicou. — Vem, preciso de um chá, minha cabeça agora está latejando.

Ele não queria passar muito tempo enchendo a cabeça do filhote sobre o reino espiritual. Tinha medo do que poderia vir disso.

Tomo Sombrio - Terceira EstrelaOnde histórias criam vida. Descubra agora