E a novidade que seria o sonho...

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— PASSEI? EU NÃO ACREDITO QUE PASSEI! — disse empolgada, correndo que nem uma maluca pela cozinha, enquanto lia o email dos superiores do Ministério Público.


Meus pais já sabiam, minha filha já sabia, eu já esperava: mas a emoção de ler que consegui uma promotoria fixa pra mim foi única, sem sombra de dúvidas. A vida de Promotora Substituta é um pouco ingrata, vou ser bem sincera com vocês — saltamos de problema em problema, e não alcançamos muitos feitos com louvor. Agora seria diferente.


Claro que tinham alguns benefícios, mas o principal de todos foi conseguir a brecha de permanecer em casa até os 15 anos de Esther, trabalhando de forma remota durante todos os anos de pandemia e mais dois anos de preguiça judiciária, que meio que desleixam o ser humano. Juris sendo adiados, reuniões de gabinete via Zoom, entra e sai de estagiários que eu nunca cheguei a conhecer e bem, por aí vai.


Conseguir esse feito era ótimo, mas com ele vinha o terror do meu guarda-roupa: O trabalho presencial. O trabalho presencial numa cidade que ia totalmente na contramão de Niterói, porque a Heloisa de 4  anos atrás achava um máximo morar numa cidade histórica do Estado, só pela boniteza, se excluindo de todos os defeitos possíveis de percurso.


Eu era mais dura há 4 anos atrás, menos maleável, mais séria. Hoje... Hoje eu sou uma mulher mais menina do que tudo. A marra ficou nos anos de luta, com certeza.


— Eu sabia que esse dia ia chegar, até porque a corregedoria jamais me daria um luxo de me passar uma promotoria definitiva sem que eu sequer pisasse lá. — disse, tomando café com a minha mãe, bufando pro alto. — Petrópolis. Tanta promotoria livre em Niterói, pô.


— Vai ter que se mudar, e rápido. — disse dona Dulce, já expulsando de casa mesmo. Fiz birra com os olhos – Lamento minha filha, mas é a realidade.


— Eu sei. É que é tanta coisa que eu pularia só pra me resguardar. Foda é ter que mudar a Té de colégio no meio do ano por conta dessa... intempérie. — gastei meu juridiquês inteiro, recebendo uma encarada do mal de mamãe. — Por conta desse desaviso. Tá melhor?


— Não precisa levar a Esther agora, Heloísa. — meu pai intermediou. — Até porque você vai ter que correr atrás de uma casa do zero, e ela nesse meio-termo vai ficar muito sozinha por lá... Eu duvido que ela vá querer mudar de cidade em menos de um mês.


— Esther não pode ficar com a mãe em casa por 6 meses, mas eu posso ficar sozinha durante seis meses sem vocês, tá tranquilo? — disse, constatando que há, sim, cria favorita naquela casa.


— Você já é grandinha pra ficar só, não acha? — apareceu a menina do meio do nada, cheia de marra e boniteza.


— Não fala assim, Teté. Eu posso levar a Creusinha pra ir com a gente. Ela ficava de olho em você e cuidando das minhas coisas por lá, né? – disse, sugerindo à minha família, que não parecia muito a favor do sequestro de Creusa e Esther assim, de uma vez só.


— Coé, dona Helô, é tão difícil viver de julho até dezembro sem mim? – respondeu a insolente, que parecia agora muito mais a minha irmã gêmea que minha filha.


— Tu anda abusada, hein, garota? — disse, puxando ela no meu colo e deixando um beijo no topo da sua cabeça. – Você concorda com isso mesmo, Esther Sampaio Medeiros?


— Esther Sampaio já tá de bom tamanho, mãezinha. — disse, renegando o nome do pai, pra variar. – Pô, não sei mãe. Talvez seja uma boa pra senhora também né. Liberdade, solitude...


— Pra mim?


— É. 32 anos nas costas e nunca saiu de casa.  — Essa menina me dava nos nervos. Dei um apertão na sua cintura, e fiz cara de brava. –  Ai!


— Eu não saí de casa por causa de você, mocinha! E tô vendo que não adiantou de nada tanto zelo. Olha que ingratidão sem cabimento!


— Agora saia por conta de mim, lindinha. — sempre uma resposta na ponta da língua. — Que maneiro vai ser a senhora lá, toda séria de terno, participando das audiências sem usar uma pantufa e shorts de pijama por baixo, mãe. Eu fico bem com a vovó e com o vovô até o fim do ano... e a senhora já estava querendo me trocar de colégio no Ensino Médio mesmo, ué.


— Desapegada essa menina, hein? Puxou a quem? — disse, encostada no ombro da minha filha, enquanto meus pais riam.


— A senhora, dona Heloisa. — apontou minha mãe, muito sabiamente. Pudera, acho que desapegada da minha família, nem na ficção eu conseguiria ser.


Esther ter dado esse impulso de que eu merecia um tempinho pra mim, uma temporada que fosse fora de Niterói, me deixou um pouco desesperada. Ok que ela é uma adolescente que quer a general fora do quartel para aproveitar (já que os meus pais dão todo e qualquer tipo de abertura pra ela aprontar nas minhas costas), mas ela ainda é a minha menininha.

Ela poderia fingir pelo menos que tinha o mesmo apego na mãe que ela tinha a 4 anos atrás, não é? Eu acho.


Com o MP na minha cola, eu não tive muita escolha. Precisava pular para Petrópolis no prazo que me pediram. Pedi afastamento da promotoria que eu cuidava de maneira remota, e comecei a procurar alguns contatos de corretores. Pensei na hipótese de comprar uma casa, de alugar, de viver num Airbnb... pensei em tudo, na verdade, tudo isso em uma plena segunda-feira de julho, sentada no conforto da minha casa.


Pedi duas coisas quando apliquei pra vaga de Petrópolis anos atrás: Que minha assessoria fosse junto, e que eu pegasse a Primeira Promotoria de Família da cidade, que era a mais requisitada da região. Dito e feito, acho que a eficiência me fez conseguir isso. Esther, que ainda estava no período de férias, me ajudou a escolher algumas localizações melhores naquela cidade que olha, era linda de verdade, tá? E com aquilo, eu vi que ela começou a se empolgar de verdade. Como não poderia se empolgar também, se até um cachorro eu cogitei criar pra segurar essa garota do meu lado?


— Mãezinha, esse condomínio parece ótimo. A senhora devia sei lá, passar um tempinho lá pra ver se é bacana mesmo, e daí...


— E daí eu gasto uma nota financiando uma casa, né? — cerrei meus olhos, concordando com ela.  — Tô te entendendo, dona Esther.


O condomínio não tinha aquele luxo escandaloso, era bem, bem tradicional, de casas boas de família, que não fugia do tradicionalismo da arquitetura de Petrópolis. Eu adorei, a garota que era entusiasmada por história também, e talvez... a gente tenha encontrado nosso cantinho por lá, longe do ninho.


Enfim, adultinha de verdade. Sem colinho de mãe, nem de filha, nem de pai e nem de papagaio. Seria só eu por algum tempo naquela casa grande, pra variar. Acho que ia adotar o cachorro antes do que eu imaginava.


Conversei com a corretora, e ela se empolgou com a ideia de trabalhar para uma promotora. Eu não sei se esse tipo de carteirada que eu dei seria muito benéfica, mas ela parecia ser tão simpática por telefone, que o sentimento que tive foi de que daria certo, daria muito certo aquilo tudo.


Marquei uma viagem de última hora, um fim de semana em Petrópolis, sem avisar pra ninguém da casa, já que me pegaram pra Cristo nessa semana e mereciam que eu virasse a senhora autônoma que eu era, de fato. Pelo menos por fora, eu era — é o que eles precisavam saber de mim.


Pois é, Doutora Promotora. Lá vamos nós.

Porque Não Eu?Onde histórias criam vida. Descubra agora