A coruja

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De repente aquela menina já não existia mais...

Uma visão no espelho a acordava de um transe terrível livrando-a do mau pressentimento, ela se encarava no espelho outra vez enquanto a fumaça do cigarro pairava sobre o ar deixando o ambiente fedido e esquisito e diversas marcas recentes em seu corpo ainda lhe infligia alguma dor.

Helena era uma mulher infeliz, pequena e de grandes olhos castanhos, a pele branca como cera onde sardas se destacavam, principalmente sobre o colo de seus seios médios, tinha os lábios carnudos e se exibia uma criatura doce e delicada na visão de muitos homens. Uma mulher que aos seus 30 anos carregava as cicatrizes de vários cortes camuflados em tatuagens de borboletas. E ela queria voar como os desenhos em seu corpo e se via aprisionada naquele aspecto físico vulnerável a tantos desejos.

Sentiu um desconforto ao acariciar a cicatriz de um corte reto em seu pulso, fechou os olhos e por impulso lembrou-se do médico e do marido conversando no quarto sobre ela e ali, naquela hora, ela se sentiu novamente invisível, eles discutindo sobre tratamentos psiquiátricos enquanto ela lutava para que ouvissem a sua voz, para que lhe dessem importância, mas ninguém a ouvia fazia anos e aquilo estava sufocando-a.

Decidiu jogar o jogo daqueles homens, fingir recuperar a sanidade, a normalidade padronizada que aquela sociedade lhe exigia e pouco a pouco foi tramando um desfecho para aquela história, Helena não tinha filhos, era estéril, não tinha emprego, era dona de casa, não tinha dinheiro, recebia pequenas mesadas do marido.

Há quase dois anos ele chegava bêbado, cheirando a perfume de outras mulheres e dormia, tinha uma amante e já não disfarçava dela o caso, não havia motivo pra fazê-lo, Helena se tornara uma empregada no decorrer dos anos e a loucura dela o fazia brochar.

Helena tinha uma boa casa que herdou dos pais falecidos, tinha um bom carro e não sabia dirigir, tinha criatividade... Mas não tinha coragem de expor o seu talento, ela pintava quadros no estúdio improvisado em um dos quartos e empilhava o material em um dos cantos, cobrindo-os com panos sujos de tintas e as telas transmitiam o seu descontentamento com a sua vida.

Aos poucos foi definhando a medida que as tintas foram secando, a medida que planos estavam sendo traçados, isolando-se...

Helena foi se isolando...

Nem o marido mais se importava se ela respirava ou não, eram dois estranhos dividindo o mesmo ambiente, ele somente dormia, já nem comia o jantar feito por ela, os alimentos foram se estragando, apodrecendo..

Então ela parou de pintar, parou de cozinhar, parou de tentar fingir, ela se deixou levar pelos dias seguintes, sobrevivendo enquanto tecia sua ultima obra de arte.

Acordou suada e sozinha, o sol raiava forte do lado de fora, se arrastou até o banheiro, o marido tinha saído para o trabalho como todos os dias fazia, depois de tomar um banho frio, ela desceu as escada e andou até o sofá da sala, olhou os seus moveis e os quadros pendurados, um porta retrato na estante lhe chamou a atenção. Helena viu na fotografia o marido e ela, vestida de noiva, ambos sorrindo, lágrimas escolheu-lhe a face e ela limpou-as com as costas da mão, não se permitiria chorar por lembranças que não eram reais, o seu casamento fora um engano e não aquilo que estava sendo exibido naquela imagem perfeita.

Ouviu o telefone tocar e deixou a ligação cair.

Helena arremessou o retrato contra a parede e viu-o partir, a moldura e o vidro, ela retirou a fotografia e com o isqueiro queimou aquele pedaço de papel.

De repente odiou a confusão que havia criado, aquela pequena bagunça que retirava a imagem de um lar feliz, se agachou sobre os estilhaços de vidro e foi recolhendo lentamente caco e mais caco, furou a mão e nem ligou para a ardência do corte.

Assim que jogou o lixo fora retornou a sala e deitou-se no sofá, ficou presa em pensamentos se permitindo adormecer por mais algumas horas, acordou com fome, no entanto nem se mexeu, estava sem forças para levantar.

Quando a noite chegou, ela viu o marido chegar e subir as escadas, o seguiu quieta e ficou observando ele entrar no banheiro, o barulho do chuveiro ligado incomodou os seus ouvidos, ela sentou-se no chão do quarto e esperou, queria que ao menos aquela vez ele a enxergasse, mas assim que ele saiu do banheiro foi direto pra cama e virou de costas pra ela.

Ela esperou que ele começasse a roncar e quando isso aconteceu Helena ignorou a visão daquele homem dormindo seminu na cama e desceu as escadas. Seguiu para a rua, àquela altura da madrugada sabia que todos estavam dormindo em suas casas e o que ela não queria era contato humano, havia decidido dar por encerrado um assunto que tanto a castigava.

Seguiu por um caminho reto até entrar no parque principal da cidade, uma coruja piou ao longe, porém ela não se desviou em nenhum momento, nem sequer olhou pra trás.

A brisa da noite era fresca apesar de algumas gotas de chuva ainda cair, ela não se importou quando sentiu a blusinha levemente molhada, algo dentro dela estava morto e o seu raciocínio prejudicado.

Conhecia o caminho perfeitamente, sabia chegar ao seu destino até mesmo de olhos fechados. Depois de alguns minutos andando ela finalmente parou, diante de si viu uma enorme arvore e em um dos troncos uma corda... Uma forca.

O marido de Helena acordou assustado com algo que não sabia o que era, buscou-a pelos cômodos da casa chamando-a várias vezes pelo nome, estranhou o fato dela ter desaparecido, ao contrário do que ela pensava, ele notara a sua presença, só não achou palavras para dizer a ela e aquilo já não era normal, preocupado ligou para o celular dela e ouviu o aparelho tocar não tão distante de si, viu o mesmo jogado no chão do estúdio de Helena, perto da pilha de quadros e curioso começou a olhar tela por tela.

Helena subiu com dificuldade até o alto desta arvore e sentada sobre outro tronco puxou a corda, o coração bateu aceleradamente, mas Helena não chorou, muito pelo contrario, ela sorria quando pegou a corda, sorria quando passou a corda pela cabeça, sorria quando apertou o laço em seu pescoço e por fim sorriu quando pulou.

Não foi uma morte instantânea, Helena se debateu com o sofrimento e sua mente lhe encheu de inúmeras ofensas por fazer aquilo, mas era necessário que o fizesse ali.

Era prudente para os demais que conviviam com ela...

E enquanto o marido vasculhava aquelas pinturas horrorizado pela ultima tela recém pintada, de uma mulher morta dependurada numa forca, uma coruja finalmente ficou em silencio, o mundo inteiro se calou e a noite desapareceu.

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