Um dia que passou

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David estava calado enquanto os seus pais conversavam na sala sobre o seu futuro, o dialogo trocado entre os mais velhos era acalorado e ele entendia o motivo de aquilo estar acontecendo.

A família vivia em um bairro bom e seguro, membros fiéis de uma congregação, não poderiam aceitar o fato do filho mais novo ser homossexual, isso era pecado.

David era um garoto reservado e possuía uma vida simples, apesar do seu jeito às vezes afeminado, sempre tentava impressionar os falsos amigos com piadinhas machistas sobre uma ou outra garota.

Douglas, seu irmão mais velho, quando tinha uma oportunidade soltava piadas homofóbicas tentando lhe tirar a razão, contudo ele fingia que não existia naquelas piadas uma segunda intenção, afinal das contas, ele era gay? Sentia atração por alguns rapazes, principalmente aqueles atletas de luta, mas nunca se envolvera com ninguém.

Em uma manhã ensolarada e extremamente quente, David colocou a mochila com os seus cadernos nas costas, despediu-se dos pais e pegou a bicicleta na garagem, pedal por pedal, seguiu até a escola, no caminho topou com um grupo de bombeiros correndo de shorts curtos e apertados, a camisa branca com o brasão estampado nas costas, o suor escorrendo pelos poros bronzeados, David parou a bicicleta e admirou a rigidez daqueles rapazes.

Ele ficou excitado.

Pegou a garrafa de água que a mãe sempre lhe pedia que levasse para evitar desidratação, uma preocupação que para ele era tola, molhou o rosto com a água e recuperou o fôlego, tentou ignorar os homens, mas o volume grande nos shorts de alguns deles lhe atraia de maneira descomunal:

- Eu sou uma bicha? – Perguntou-se enquanto voltava a pedalar pra longe dali.

Chegou a escola minutos antes de a aula começar e colocou uma corrente na bicicleta, avistou ao longe cinco garotos, os seus amigos desde o primário, percebeu que entre eles estava um outro que ele sequer conhecia, mais franzino.

O garoto parecia amedrontado no meio daqueles valentões, Carlos, o mais velho do grupo balançava no alto um objeto que David notou ser um óculos de grau enquanto o pobre garoto se encolhia entre os gritos histéricos ao seu redor.

David correu até o local e recuperou os óculos do garoto, assim que devolveu o objeto, o garoto saiu correndo tropeçando mais a frente, a garotada no pátio riu do menino, David somente observou em silencio, viu o garoto se levantar e andar mancando até a frente do prédio, as calças rasgadas no joelho e pingos de sangue manchar o chão.

Mais tarde, depois da aula David foi até uma lanchonete com uma garota, sua namorada Tatiane, pediram um lanche pra cada um e foram se sentar num dos bancos, o garoto que havia se machucado de repente saiu da área interna da lanchonete, uniformizado e foi atender outros clientes, a lente nos óculos refletia sobre as luzes do ambiente, David já não prestou mais atenção na namorada, algo naquele garoto lhe atraiu.

Quando a garota decidiu ir embora, ele permaneceu sentado, deu-lhe um beijo carinhoso no rosto e pediu que ela ligasse pra ele quando chegasse em casa, esperou que a lanchonete ficasse menos movimentada e chamou o garoto:

- Você está melhor? – Perguntou enquanto fingia ler o cardápio.

- Como? – Ele não entendeu.

- A confusão na escola hoje de manhã – Encarou-o – Conheço aqueles garotos faz 10 anos, mas eles ainda agem como se tivessem seis.

- São uns babacas! – O garoto respondeu.

- Sim, eles são!

- Mas você anda com eles!

- Ando.

- Você é diferente de todos eles, porque continua perdendo o seu tempo com aquele grupo?

- Porque acha que sou diferente? - David quis saber.

- Olha, não é porque eu uso óculos que sou um cego – O garoto sorriu – Você é melhor do que eles.

David sentiu um calafrio com aquelas palavras, o garoto lhe instigou e no decorrer dos dias seguintes eles começaram a se encontrar naquela lanchonete, Paulo era um garoto muito inteligente e divertido, poderia falar sobre qualquer coisa e a qualquer instante o surpreendia com uma frase ou um gesto familiar.

Depois de dois meses conversando, os garotos decidiram sair juntos, eles foram há vários lugares como bares, shopping, cinema...

Paulo, aproveitando-se das provais finais, um dia convidou David para estudar em sua casa e ambos ficaram horas debruçados sobre os livros até que a madrugada debateu-se sobre eles.

Paulo decidiu tomar um banho enquanto tomava coragem e quando voltou ao quarto estava todo molhado, David paralisou com a visão do corpo magro do amigo:

- David – Paulo o chamou.

- Oi.

- Posso te pedir uma coisa?

- Claro – Respondeu voltando a atenção aos livros.

- Me fode.

- O que? – David encarou o garoto.

- Eu quero sentir o seu pau no meu rabo – O garoto pediu – Me fode.

Paulo e David se envolveram naquela noite e nos meses seguintes continuaram a relação.

Carlos foi quem descobriu tudo, em uma tarde quente quando o pessoal da escola decidiu ir ao rio da cidade, ele viu entre algumas arvores os dois garotos se beijando, Carlos tirou uma foto daquilo e decidiu revelar a verdade a todos os colegas, inclusive aos pais de David.

Houve a perseguição, a revolta de muitos, o nojo, David foi se isolando das pessoas e sem apoio de ninguém tentou procurar em Paulo um abrigo, mas os pais de Paulo o transferiram de escola e o obrigou a de deixar o trabalho, eles proibiram os dois de se encontrarem.

David não conseguia entender como o preconceito ainda existia em pleno século 21.

E os pais dele entraram em desacordo sobre o que fazer com o filho mais novo. A mãe sugeria um exorcismo e o pai um psiquiatra, o menino saudável e bonito em instantes se tornara um cara doente e possuído pelo mal.

Os irmãos também o julgaram assim.

Foram-se meses de tortura, a desilusão o atormentou e as lembranças o fizeram chorar.

Até que uma tarde vermelha chegou, David não queria, mas foi obrigado pelos pais a sair de casa e ir para a escola, ignorou os comentários dos velhos amigos e de alguns conhecidos que antes o admirava, fez todas as aulas sem prestar atenção em nada, esperou o sinal do meio dia tocar, correu e pegou a bicicleta, ele pedalou até um terreno baldio, não sabia o porquê de ter ido até ali, porém era ali que ele deveria estar.

Ouviu vozes vindas atrás de si e quando olhou pra trás percebeu que havia sido cercado por alguns garotos da escola, eles seguiram em sua direção com pedaços de pau na mão, tentando assustá-lo, porém David não era um covarde, ele os enfrentou.

Um chute, um soco, uma paulada, um chute, outro soco e a queda, um deles roubou-lhe a bicicleta enquanto os demais lhe arrancaram as calças, eles pressionaram o garoto no chão, David sentiu o peso deles em cima de si.

Tentou respirar, tentou não chorar enquanto eles faziam o que bem entendiam...

Tentou entender, tentou perdoar, orou...

O sangue ainda fresco escorreu sobre a face, uma dor infernal em seu quadril, David gritou várias vezes e ninguém escutou...

Quando tudo terminou, sentiu mais alguns chutes nas pernas feridas, no estomago, nas costas...

Sentiu as pauladas quebrando-lhe os ossos, fúria, o nariz arrebentado, o vazio...

Um baque surdo na cabeça e o vazio.

O SombrioOnde histórias criam vida. Descubra agora