Capítulo 1

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Rodrigo Ribeiro (Falcão) - 37 anos

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Rodrigo Ribeiro (Falcão) - 37 anos

Falcão

Meu relógio de pulso marca exatamente sete e vinte da manhã. Observo minha quebrada lá de cima da laje da boca principal, enquanto o sol começa a rachar o asfalto. Meu olhar desce pro bonde de meninas descendo o morro. Enquanto isso, bolo um baseado, esperando o Menor chegar com a grana das drogas vendidas na madruga.

— E aí, meu parceiro, tá ficando surdo já? - Escuto a voz do Kaká, subindo a escadinha. — Mó tempão te chamando lá embaixo. - Fala ele, meio na marra.

— Já falei pra parar de me chamar de parceiro. - Aviso, levando o baseado pra boca e acendendo. — Não sou parceiro de pela saco, demorô? - Solto, firme.

— Tá estressado logo cedo? - Ele devolve, se jogando na cadeira ao meu lado. — Tá precisando transar parceiro. - Provoca, rindo daquele jeito que me irrita.

— Caralho, mané, chatão tu hein. - Falo de canto, passando a língua pelos lábios, sentindo o gosto forte da erva. Arrumo meu boné vermelho e encaro ele, já sabendo que o maluco tirou o dia pra encher a porra do meu saco.

— Os cara ontem no baile fizeram mó bagunça, irmão. - Comenta

— Já falei que não quero caô nessa porra. - Mando a real, sem paciência — Se eu broto lá, vão se foder bonito na minha mão, tu sabe como é.

Kaká é cria antiga. Conheci o Kauã, quando eu tinha dezesseis anos. Ele é filho de um soldado do antigo dono da Maré. Eu já tava no corre, e ele foi o primeiro a sacar o quanto eu curtia mandar neguin pra vala. Foi ele quem me ajudou a sumir com o que sobrou do corpo daquela vagabunda e desde então, é meu de fé.

— Qual foi, tá me encarando por quê? - Pergunta ele, com aquele sorriso de pilantra estampado na cara.

— Não tô com paciência pras tuas brincadeiras hoje, sacô? - Respondo, dando mais uma tragada forte saciando a minha vontade.— Vai lá e espera o Menor trazer a porra da grana, aproveita que tu tá com tempo.

Levanto da cadeira, guardo a ponta do baseado no bolso e sigo pra escadinha, largando o otário lá falando sozinho. Não tenho tempo pra papinho furado. Subo na minha moto, dou a partida e sigo em direção à casa da minha coroa. Nem lembro quando foi a última vez que vi a velha.

Mesmo morando na mesma área, preferi manter ela afastada do meu corre. Não posso vacilar e deixar que alguém use ela pra me atingir. Ela não entende, mas é assim que eu protejo a única pessoa que ainda sobrou na minha vida.

Nunca conheci meu pai. A única coisa que sei é que ele nunca fez questão de mim. O cara tinha outra família, outros filhos, e nunca quis assumir o filho da favelada. A ausência dele nunca me fez falta. Minha mãe fez o papel de pai e mãe.

Cresci no inferno da favela. Já perdi o suficiente pra saber que não quero ninguém ao meu lado. No final, a gente morre sozinho.

Entrei pro crime com doze anos. Era moleque e ficava viajando vendo os muleque da minha idade tudo trajado com roupa de marca, desfilando de tênis novo. Entrei porque queria ter tudo aquilo e minha mãe não podia me dar. Quando me liguei no desgosto que causei pra ela, já era tarde demais. Eu tava enfiado até o pescoço no crime.

Com o tempo, fui enchendo o bolso, mas perdi minha liberdade. Não posso sair da comunidade, ou vou ter a cara varada no tiro, seja pelos cana ou pelos meus inimigos.

Virei dono do Complexo da Maré com vinte e três anos. Fiz inimigos pra caralho e trouxe ainda mais desgosto pra minha mãe. Me envolvi em assaltos grandes, e não tava nem aí se minha cara aparecesse no jornal. Só queria ficar mais rico. Minha ganância me cegou. Num desses corres, dei mole. Fui preso e condenado a dez anos e mais um pouco, sem direito a uma saidinha sequer.

Trancado igual um bicho, sem poder respirar o ar puro, eu entendi a real: nada vale mais que a tua liberdade.

Estaciono a moto em frente à casa da minha mãe e desço, guardando as chaves no bolso da bermuda. Tento criar coragem para entrar, já sabendo o quanto ela vai falar por eu estar tão afastado. Sei que, apesar do esporro, é a preocupação falando mais alto. Ela sempre foi a única que nunca me abandonou, mesmo quando todo mundo virou as costas.

Com passos longos, caminho até a entrada da casa, vendo como tudo está igual à última vez que vim aqui. Os mesmos vasos na varanda, as plantas maltratadas pelo tempo, mas ainda sobrevivendo, assim como ela.

— Filho, meu Deus! - Ela vem em minha direção e me abraça com força. Beijo sua cabeça, sentindo o cheiro dos seus cabelos, aquele perfume simples que me faz lembrar de tempos melhores.

— Tá tudo tranquilo por aqui? - Pergunto, sentindo a paz que o seu abraço me transmite, algo que eu não sentia há anos, trancafiado na cadeia.

— A última vez que te vi entrando aqui, você tinha acabado de sair da prisão. - Ela se afasta e me olha dos pés a cabeça, como se procurasse algum machucado, algo que não estivesse no lugar, como se eu pudesse estar quebrado por dentro ou por fora.

— Você está bem? - Passo a mão no maxilar e confirmo, tentando não mostrar o cansaço que sinto. — Vem, filho, entra.

Tenho trinta e sete anos, vivo como um cão, fugindo e matando para não morrer. Não tenho piedade de ninguém, porque ninguém teve piedade de mim. Mas, para minha mãe, eu sou sempre o filho dela, o moleque que ela viu crescer com dificuldade, mas com esperança. Faço muitas mães chorarem para que a minha não chore. Ela é tudo o que me resta, a única pessoa que ainda acredita que existe algo de bom em mim, mesmo quando eu já não acredito mais.

A casa cheira a comida caseira, o que traz uma sensação estranha de conforto. Enquanto como, ela fala sobre coisas simples da comunidade, dos vizinhos, do dia a dia. Evita falar do tempo que passei preso, como se isso pudesse trazer de volta os fantasmas que lutamos para esquecer. Eu apenas escuto, curtindo sua voz, aquela que era a única que me visitava, e me mantinha ligado ao mundo de fora.

— Promete que não vai sumir mais, meu filho? - Ela fala com a voz meio embargada, engolindo o choro. — Eu fico tão preocupada, Rodrigo. Você é tudo o que me sobrou.

Saber que ela me vê assim, como a única família que tem, dói mais do que qualquer marca que consegui nas ruas.

— Não vou sumir mais, jaé - Confirmo, sabendo que minha vida é instável demais para garantir isso.

Depois do almoço, me despeço dela, com aquele nó na garganta que sempre sinto quando a deixo para trás. Ela me vê como o filho que foi um dia, e não como o homem que sou agora. Saio em direção à minha moto, tiro a chave do bolso e ligo o motor, sabendo que lá fora, o mundo continua o mesmo. Minha mãe é minha única âncora, a única lembrança de uma vida que poderia ter sido diferente. Ela é a minha única família, o último pedaço de humanidade que ainda tenho.

Sigo em direção aonde os menor fazem os corre, tentando deixar pra trás o sentimento de culpa que sempre carrego ao sair daquela casa. O peso de ser o único que ela tem.

Em Suas Mãos (Degustação)Onde histórias criam vida. Descubra agora