1. Novos Ares

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O cheiro de mofo me atingiu assim que abri a porta da cabana

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O cheiro de mofo me atingiu assim que abri a porta da cabana. O lugar parecia me repelir. A madeira estalava sob meus pés. O abandono estava por toda parte, nas paredes descascadas, nos móveis quebrados.

Fechei a porta com um estrondo, tentando evitar o ar pesado que me cercava — um eco da minha própria vida. Mal tive tempo de processar isso quando o celular vibrou no meu bolso. Olhei para a tela e suspirei. Claro que era ele.

— Alô. — A voz do outro lado era como o riso de um abutre avarento, que não se cansa de bicar a carcaça do que restou de mim.

— E aí, já chegou? — Era Morello, o editor da Versos Aversos.

— Uhum... Infelizmente. — Passei os dedos pela maçaneta de bronze empoeirada, tentando afastar a ideia de que este lugar era um reflexo da minha carreira. Podre. Morto.

— Olha, Diego, você não tem do que reclamar!

Não tenho? O que não faltam são motivos para isso. A cabana decrépita era digna da editora que comprou minha alma há quase uma década.

Não precisei de muito tempo para perceber que aquele lugar, assim como o estado da minha carreira, estava apodrecido. Se ao menos tivesse comprado um bom rum no caminho, a sujeira que me cercava seria imperceptível, ou melhor, ignorável.

Mas o abutre continuou a cantar no meu ouvido:

— É um refúgio temporário, até que consiga se livrar do bloqueio criativo.

— E como devo me inspirar nessa mer... ugh. — O cheiro pútrido atingiu minhas narinas. Meu estômago revirou, e as palavras morreram na garganta.

— Diego? — Por um segundo, Morello pareceu genuinamente preocupado. Talvez estivesse mesmo. Se perdesse um dos poucos autores que lhe garantiam vendas e presença em grandes eventos literários, fecharia as portas.

— Enfim. Pare de frescura e escreva! Precisamos de um romance.

Aquela maldita discussão novamente. Nos últimos meses, era só disso que se falava. Tomei coragem e abri a porta novamente. Em meio ao açoite do fedor acre, consegui atravessar a sala, abrir as janelas e escapar dali.

Quase livre do aroma do sovaco do ceifador, voltei a respirar.

— Eu já escrevo romances! ROMANCE POLICIAL. — Me apoiei na maçaneta, a única estrutura apodrecida, mas sólida o suficiente para me manter de pé.

Do outro lado da linha, ouvi Morello gemer. Aposto que ele estava se agarrando aos poucos tufos de cabelo que restavam nas laterais daquela bola de merda brilhante que repousava sobre o seu pescoço.

— É o que o mercado quer. Romântico e com final feliz.

— Quem... quem decidiu essa merda? — Bati a porta mais uma vez, torcendo para que tudo ali desmoronasse, inclusive o meu algoz.

— Vai lhe fazer bem se aventurar em novos estilos. — E, da mesma forma inconveniente que surgiu, sumiu a voz uníssona de todos os demônios da caixa de Pandora.

Deixei a cabana, certo de que ninguém ousaria roubar nada daquele lugar esquecido por Deus. O cheiro de carniça era forte demais até para os ladrões.

Munido do remédio para a minha frustração, atravessei a cidade. Os olhares curiosos não me incomodavam. Diego Ventura não é meu nome real. E tampouco me importo com quem tenta descobrir quem sou. Há muito tempo, sou apenas o meu pseudônimo.

Os primeiros goles de rum desceram queimando, e por um momento, senti algo próximo ao alívio. Um silêncio temporário para o caos em minha cabeça. Bebi mais. E mais. Até que o líquido âmbar me fez cair à mesa e mergulhar em memórias que preferia enterrar.

 Até que o líquido âmbar me fez cair à mesa e mergulhar em memórias que preferia enterrar

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Para muitos, os tempos de faculdade são nostálgicos. Para mim, um eterno lembrete de que Morello estava certo: ser escritor por paixão e arte não paga as contas.

Ele abandonou o curso de Letras no último ano e foi direto para o de Marketing. E, como ele prometeu, aqui estou eu, vivendo sua maldição.

"Não esquenta, te dou um emprego no futuro!" Mal sabia eu que seria também o seu cachorro. Não o que se coloca sobre o colo para acarinhar, mas o que se alimenta de refugos do açougue e vigia a fazenda do dono.

Fui arrancado dessas lembranças pelo som de algo se estilhaçando no chão. Levantei a cabeça em um sobressalto, a saliva ainda pendendo dos meus lábios. Meus olhos pesados focaram na porta no final do corredor. Ela balançava como um borrão negro. Não era a garrafa. Era algo... atrás daquela porta.

Com alguma dificuldade, consegui me levantar. Caminhar foi outra história. Pés moles que se cruzavam e pernas bambas me guiaram até a maçaneta, que parecia escapar de mim.

— Mald-hic-ta... desviando da minha mão... — Mas o cheiro da morte ali era mais forte. E nem mesmo a embriaguez me fez ignorá-lo.

Congelei. Disse a mim mesmo que era apenas um rato morto. Um rato que apodrecia atrás daquela porta. Mas eu sabia. Sabia que havia algo mais.

Toda casa tem um porão. E aquela cabana não era exceção. Quatro portas: uma para sair do inferno, outra para o banheiro — prefiro não comentar —, uma para o quarto. E aquela. A que eu evitava. A que me chamava.

Os porões existem para enterrarmos nossas culpas e nossos medos. Este, em particular, parecia ansioso para me devorar.

Era como estar em uma das minhas histórias. E eu sei que, se for o personagem principal, estou fodido. O cheiro podre, mais antigo que aquele lugar, se condensava devagar, um aviso macabro de que aquilo que estava lá embaixo não queria ser perturbado. Ou talvez fosse o contrário — desejava ser desvendado.

Tum... Tum... Tum...

Soltei a maçaneta. O suor escorria pelas minhas mãos trêmulas, e o som que vinha do porão se misturava ao batimento do meu coração. A saliva se prendeu à minha garganta, lutando para não descer.

Era como se o porão estivesse pulsando em resposta à minha hesitação, medos e segredos.

Tum... Tum... Tum...

Sempre mantive meus porões selados. Meus segredos enterrados. Mas algo queimava em mim. A curiosidade. O desejo de saber o que se escondia lá embaixo.

Respirei fundo e estendi a mão novamente. O peso do puxador parecia dobrado. O que quer que estivesse lá estava pronto. E eu não poderia mais fugir.

Com um último olhar para a porta, girei a maçaneta. O porão pareceu suspirar em resposta.

O Porão Que Me Habita - yaoiOnde histórias criam vida. Descubra agora