Capítulo 7: Mentes flutuantes

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Oito semanas após o incidente no hospital

 O que aconteceu naquele dia ainda me assombra, como um filme ruim passando na minha cabeça sem parar. Mas o pior de tudo? Eu não contei nada disso para a minha família. Eles acham que está tudo indo bem, que eu estou prestes a terminar o estágio com sucesso e pronta para conseguir um emprego em qualquer lugar. A verdade é que estou desesperada.

Eu sei que não vai demorar muito até a verdade aparecer, até alguém perguntar por que eu não consegui uma vaga ali depois de tudo. Mas como eu vou dizer isso para eles? "Oi, mãe, então... eu fui demitida. Mas não se preocupa, foi por uma briga que nem fui eu quem começou". É, não vai rolar.Aliás, "não vai rolar" define bem minha vida ultimamente. Como as coisas com Ajax. Eu terminei com ele, logo depois de descobrir que ele só foi transferido. Isso foi a gota d'água. Ele não sofreu nada, absolutamente nada, enquanto eu fui arrastada para o olho da confusão.Lembro direitinho da última vez que conversamos. Na verdade, acho que "conversamos" não é a palavra certa. Foi mais uma briga. Eu estava tentando ser razoável, explicar por que aquilo me incomodava tanto, mas ele só... não entendia...


"Você tá fazendo uma tempestade em copo d'água, Enid. Foi só um empurrãozinho. Qual o problema?", ele disse, com aquela cara de quem acha que tá certo.
Eu sentia cada célula do meu corpo vibrando de raiva.
"Você quase derrubou uma paciente, Ajax! E ainda por cima, quem vai perder o emprego sou eu, não você! Você simplesmente não se importa?", eu quase gritei, segurando as lágrimas.
Ele olhou pra mim como se
eu estivesse exagerando."Eu já fui transferido. O hospital resolveu. Tá tudo certo."Eu não sabia se ria ou chorava.
Era isso? Ele realmente achava que tava tudo bem? Como se nada tivesse acontecido?
"Não dá, Ajax. Eu não consigo mais. Isso acabou aqui." 


E foi isso. Um ponto final que eu sabia que deveria ter colocado antes. O peso desse relacionamento já não fazia sentido.
Minha mãe, claro, não entende nada disso.
Porque eu não contei.
E como ela não sabe, toda vez que o nome do Ajax aparece, ela me olha como se eu fosse a pessoa mais ingrata do mundo por ter terminado com ele...

"Por que você terminou com ele, Enid? Ajax era um bom garoto. Agora você tá sozinha, sem ninguém pra te apoiar. Como você vai conseguir se virar sozinha?"
Ela perguntou de novo essa manhã. Só faltou me chamar de irresponsável.
Respiro fundo. Tento não explodir. Minha mãe nunca foi boa em entender as coisas que eu não conto. "Mãe, já falei que não deu certo. As coisas não funcionaram.""Não funcionaram? Isso é desculpa. Alguma coisa aconteceu, e você simplesmente não quer me contar."


Ela não estava errada. Aconteceu, sim. Mas eu não ia contar. Não ainda. Eu só preciso de um tempo. Eu tô tentando. Tento repetir na cabeça, mas até pra mim soou fraco.
No hospital, as coisas não estão muito melhores. Cheryl, tem feito de tudo para me ajudar. Ela se sente culpada, e isso é meio desconcertante, porque eu sei que não foi culpa dela. Mas Cheryl é assim, não consegue deixar passar...


"Enid, eu vou falar com a coordenação de novo. Eles precisam revisar isso. Você não pode ser a única a sofrer as consequências dessa história." Ela me disse isso pela milésima vez, enquanto andávamos pelo corredor.Eu suspirei. Tinha que ser firme com ela, dessa vez.
"Cheryl, não é culpa sua. Você não podia controlar o Ajax. E, honestamente? Acho que mesmo se a coordenação revisasse, eles não mudariam de ideia." Eu sorri pra ela, ou tentei, pelo menos.
"Mas eu me sinto horrível. Eu que comecei a confusão com aquela história de número, e isso acabou levando ao surto dele. É ridículo você ter que pagar por isso." O tom dela era sincero, mas misturado com aquela frustração por não poder mudar as coisas.Eu parei e toquei o ombro dela, tentando mostrar que eu realmente não a culpava. "Você já tá fazendo muito por mim, Cheryl. De verdade. Agora eu só preciso pensar no que vou fazer quando isso tudo acabar."Ela suspirou, derrotada.


 Eu segui meu caminho, tentando segurar o peso de tudo. Eu não sabia o que ia acontecer, mas uma coisa era certa: ia ter que enfrentar isso sozinha. Mais cedo ou mais tarde, ia ter que contar pra minha mãe, pra minha família. E, até lá, era um dia de cada vez. As palavras já estão na ponta da língua, prontas par sair. Mas quando vai ser o momento certo? Eu ainda não sei.

XXX

Estar no comando da família Addams nunca foi um fardo para mim. Na verdade, é uma responsabilidade que sempre aguardei com uma estranha antecipação. Meus pais partiram para mais uma de suas prolongadas luas de mel, um pretexto, é claro. Imagino que para testarem minha capacidade de liderar a família em suas breves ausências.
Papai, com seu entusiasmo incansável, me deu as últimas instruções, enquanto Mamãe, com seu olhar frio e afetuoso ao mesmo tempo, apenas murmurou: "Cuide bem de todos." Pugsley, sempre fiel ao papel de irmão mais novo que causa mais confusão do que resolve, continuava sendo uma peça útil nas missões. "Quebrar alguns ossos", como ele gostava de dizer, era a parte de sua contribuição. Claro, eu permitia que ele achasse que estava no controle em certas situações, o que facilitava os meus próprios planos.A presença de Desdemona também tornou tudo ainda mais fácil. Desde o incidente das lutas, ela tem se comportado como uma sombra eficiente. Seus instintos letais eram inegáveis, e isso nos ajudava a manter o controle dos negócios da família sem maiores complicações. Nossas saídas noturnas eram meticulosamente calculadas: cobranças de dívidas, reorganizações, pequenos ajustes necessários no submundo para garantir o fluxo adequado de respeito, e é claro, medo.
Mãozinha e alguns dos capangas cuidavam do resto, com Desdemona ao meu lado, sempre pronta para qualquer tarefa.

Desdemona, tem me pedido folgas esporádicas, o que inicialmente considerei estranho, mas logo percebi o motivo: Cheryl. A enfermeira do hospital conseguiu o improvável. Desdemona, conhecida por sua libertinagem, e falta de compromisso, envolveu-se com a ruiva. Não que eu condene o ato, afinal, o amor e a morte sempre andaram de mãos dadas na minha família. No entanto, havia algo de desconcertante nessa relação. Desdemona parecia se suavizar nas raras vezes que mencionava Cheryl, como se as facetas da luta e da violência fossem temporariamente substituídas por algo mais... dócil...

"Você anda diferente. Não tão centrada. Cheryl, suponho?"
"Ela é engraçada, Wednesday", Des me disse certa noite, enquanto revisávamos alguns documentos.
"Me faz rir de coisas que eu normalmente acharia... irritantes."
"Influências podem ser fraquezas. Mas, se é o que você precisa para funcionar, mantenha-se controlada. Só não deixe que interfira nas prioridades da família."
"Não se preocupe," Desdemona disse, erguendo as mãos como em rendição. "Tenho tudo sob controle. E, falando nisso... eu ia pedir uma folga amanhã à noite. Cheryl tem um turno de folga, e..."
"Você sabe que trabalho e distrações não se misturam bem," respondi, interrompendo-a, mas com um olhar que revelava que, na verdade, eu sabia muito bem o que era manter distrações funcionais. Mantive um momento de silêncio antes de completar: "Mas vá. Só não esqueça das suas responsabilidades." 
O sorriso de Desdemona já dizia mais do que suas palavras.

Ao observá-la mais de perto, a imagem que surgia em minha mente não era de Desdemona com Cheryl. Era de Enid. O rosto dela se infiltrava em meus pensamentos nos momentos mais inoportunos. Como naquela vez em que ela cruzou meu caminho no hospital, a tensão tangível entre nós.

Ou quando eu observava seus movimentos suaves e cuidadosos ao lado de uma paciente.
Eu, que sempre desprezei as frivolidades emocionais que pareciam dominar as massas, agora me via contemplando as feições de Enid com uma frequência perturbadora.Durante as noites mais silenciosas, quando o trabalho estava concluído e o mundo parecia em repouso, meu pensamento se voltava àquela presença inquietante.
E eu me perguntava o que exatamente havia naquela garota-lobo que provocava tais divagações?

WenClair & Os Addams na MáfiaOnde histórias criam vida. Descubra agora