Abro a porta do terraço do prédio, ofegante e com dor nas panturrilhas. Coloco as mãos nos joelhos. Levanto o queixo apenas um centímetro, uma fina camada de névoa fria se espalha pelo ambiente. Uma silhueta dá um passo em direção à queda do nono andar, as mãos se firmam nas hastes de ferro vermelhas que delimitam o espaço.
Deixo a porta bater e caminho até a pessoa em passos muito, muito lentos. Ou será que o chão está se alongando cada vez mais? Parece haver uma vida de distância entre nós. Acelero os passos até que estou correndo. Quanto mais esforço faço, mais distante a pessoa parece ficar de mim. Sinto o coração subir pela boca, batendo tão forte que poderia parar. A névoa me envolve num véu gélido que faz todos os meus ossos doerem.
Minha mãe olha por cima do ombro e exibe um sorriso gentil. Ouço um ruído estridente, embora baixo, no fundo da consciência. Perco velocidade, a respiração volta a entrecortar e as pernas doem. Eu não vou conseguir alcançá-la antes que caia. As lágrimas ameaçam desabar, porém, consigo segurá-las ao apertar os olhos com toda a força que existe em meu ser.
Uma nova silhueta surge no meio da névoa, primeiro difusa, sacolejando como uma chama obscura, depois ganhando forma humana. Fica parada ao lado da minha mãe, alta e vestindo um casaco-sobretudo preto. Por que ele está aqui? Por que está tão próximo da minha mãe? Ela volta a contemplar o horizonte onde as nuvens se despedaçam como fragmentos de um sonho...
Sonho! Eu estou sonhando! Arregalo os olhos, surpreso em conseguir distinguir as coisas. O Chapeleiro também me olha por cima do ombro, mas seu sorriso não é nada gentil. Mesmo a essa distância enorme eu consigo ver toda a perversidade que exala de seus dentes apodrecidos. Um braço esguio coberto de sombras sai de dentro de seu sobretudo e encosta nas costas dela.
Não, não, não, fico repetindo na minha cabeça e a voz ecoa no ambiente junto do ruído estridente que está um pouco mais alto. Avisto de relance um risco vermelho debaixo da aba do chapéu-coco, fico paralisado como em nosso primeiro encontro. Falta o ar em meus pulmões, perco a força nas pernas e caio de joelhos. Estico a mão na direção dela, torcendo que possa alcançá-la por estar em um sonho, mas o Chapeleiro tem controle do pesadelo.
Minha mãe sacode o corpo para frente, as mãos apertam o metal na tentativa de não cair. Gira o corpo, buscando equilíbrio com as costas já encostadas no ferro. Estica uma mão em minha direção, os olhos assustados veem o terraço uma última vez antes de seu corpo mergulhar em queda-livre.
Sobressalto no sofá, sentando-me com os pés no chão. O barulho estridente de antes martela nos ouvidos. Vem do interfone que deve estar tocando há vários minutos. Esfrego os olhos com bastante força, voltando ao mundo real, afastando as cenas do pesadelo que parecem reais demais. O celular vibra do meu lado. Melissa enviou várias mensagens.
[19h24, XX/XX/XXXX] Melissa: sou eu na porta, atende
[19h25, XX/XX/XXXX] Melissa: se vc não atender eu vou invadir!!!!
[19h25, XX/XX/XXXX] Melissa: olha que eu sou louca, hein
[19h26, XX/XX/XXXX] Melissa: IAAAAAAAAAAAAAAAAAAAN
[19h26, XX/XX/XXXX] Melissa: IAaAaAaAaaAaAaAn
[19h27, XX/XX/XXXX] Melissa: pelo amor de DEUS eu vou chamar a polícia pra arrombar tudo se vc não atender
[19h28, XX/XX/XXXX] Melissa: Ian, não me assusta desse jeito...
[19h28, XX/XX/XXXX] Ian: Desculpa, eu dormi.
Leva menos de dois segundos para ela parar de tocar no interfone após minha mensagem. Arrasto os pés até o aparelho, aperto o botão e consigo escutar o estalo do portão fechando em seguida. Preciso colocar uma roupa adequada para recebê-la. Após decidir que não iria sair, eu retornei a bermuda solta de pijama e uma camiseta amassada que uso para passar dias preguiçosos.
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Você Não Está Só
RomanceIan não acredita no sobrenatural. Mesmo vendo seus familiares falecerem coincidentemente a cada dois meses, ele ainda prefere acreditar ser apenas o acaso. Após enterrar seu irmão e ver uma figura sombria em plena luz do dia, ele tem certeza que enl...