Acordei com uma estranha sensação de leveza, como se estivesse flutuando à deriva num mar calmo. Ao abrir os olhos, me vi sentada na cama de um hospital, envolta por uma luz fria e pálida. Não sentia dor, embora o curativo grosseiro no meu nariz e as manchas roxas que cobriam meus braços contassem outra história. Fiquei ali, imóvel, ouvindo o som da chuva batendo na janela. Parecia um universo à parte, onde só existiam eu e aquele instante solitário.
Meus olhos vagavam pelo quarto vazio, tentando absorver aquela paz momentânea, até que ouvi murmúrios vindos da porta.
— Ela vai ficar bem — uma voz feminina soou do corredor, baixa, mas clara. A porta se abriu, revelando duas enfermeiras, uma médica e... Miranda.
Miranda estava com os braços cruzados, os lábios finos e franzidos em uma expressão que eu conhecia bem: aborrecimento. A irritação lhe caía bem, era quase um traço permanente.
As médicas e as enfermeiras pareciam se encolher, como todos faziam diante da fúria dela. Isso sempre foi atraente para mim, embora eu me pergunte até que ponto isso não é apenas uma disfuncionalidade minha.
— Foi o que você me disse ontem, e ainda assim ela— começou a dizer, virando-se para a médica, mas parou no meio da frase ao perceber que eu estava olhando para ela.
Por um instante, o mundo pareceu parar, nossos olhos se encontraram e tudo ficou em silêncio por alguns instantes. Então, Miranda deu alguns passos decididos, seus saltos ressoando alto contra o piso de madeira polida, e, antes que eu pudesse reagir, ela praticamente se atirou em meus braços. Ela me abraçou com força, como se quisesse garantir que eu realmente estava ali com ela.
— Por Deus... — ela murmurou, a voz quase um sussurro contra a minha pele. — Eu senti tanto a sua falta.
Franzi o cenho, surpresa. Por que ela sentiria minha falta? Não estávamos afastadas, e, ainda assim, suas palavras pareciam tão carregadas de emoção. A vulnerabilidade que eu via em Miranda naquele instante me desconcertava, quase tanto quanto o próprio fato de vê-la ali, comigo.
— Eu estou aqui, meu amor. — Respondi, embora minha voz soasse enfraquecida, ainda baixa.
Ela sorriu levemente, um sorriso que trouxe um calor inesperado ao meu peito. Lentamente, Miranda se afastou, apenas o suficiente para me olhar nos olhos, enquanto sua mão subia até minha bochecha em um toque suave e carinhoso. Havia um brilho de alívio em seu olhar que eu raramente via, algo tão profundamente honesto que fez um nó se formar em minha garganta.
— Você esteve em coma por quatro dias, Andrea. — As palavras dela eram quase incrédulas, como se ela própria ainda estivesse processando. — Seus irmãos ficaram na minha casa durante todo esse tempo.
Arregalei os olhos, uma onda de choque percorrendo meu corpo. Coma? Quatro dias? Não fazia sentido. O último momento de que eu me lembrava parecia tão recente... ainda sentia o eco das ameaças, o cheiro metálico de sangue... Como isso havia se transformado em quatro dias de vazio?
— Sim, Srta. Sachs. — A médica se aproximou, observando-me com uma expressão de leve preocupação. — Embora os ferimentos externos tenham sido superficiais, as lesões internas estavam comprometendo seu quadro de saúde há algum tempo. Ao que tudo indica, o choque agravou uma hemorragia pré-existente, e a perda de sangue fez com que perdesse a consciência. Mesmo com a transfusão, você não reagiu de imediato.
Ela falava, mas eu mal conseguia absorver todas as palavras. Cada detalhe parecia afiado demais, real demais. Miranda, ao perceber meu olhar confuso, apertou levemente minha mão, trazendo-me de volta para aquele momento.
— Eu... Eu não sabia — murmurei, minha mente girando com as revelações. Cada vez mais eu me dava conta do impacto que os segredos da minha vida haviam causado. A inquietação, os hematomas que eu tentava esconder, os desaparecimentos... Tudo se acumulava numa tensão que nem eu mesma compreendia até agora.
Miranda suspirou, e percebi que, mesmo aliviada, havia algo não resolvido no olhar dela. Como se esse abismo entre nós finalmente estivesse à tona.
— Andrea, eu esperei muito tempo por uma explicação sua — disse, a voz dela era baixa, quase um sussurro. — E depois desses dias, depois de tudo o que eu soube... Eu preciso saber a verdade. Quem você é, o que vive... eu não posso continuar sem entender o que isso significa.
Hesitei, o peso de tudo me pressionando, como se cada palavra que eu dissesse pudesse abrir feridas que jamais poderiam ser fechadas.
— Eu... Eu te devo isso — admiti finalmente. — Te devo a verdade.
Miranda assentiu, o toque dela permanecendo suave em minha mão. E naquele silêncio, com o som constante da chuva ao fundo, percebi que os limites que sempre tentei manter entre nós estavam finalmente se desfazendo. Não havia mais como voltar atrás.
Naquela tarde, com a claridade do céu cinza se infiltrando pela janela, contei tudo a ela. Falei sobre a morte da minha mãe, que foi o início de toda essa escuridão que se instalou em nossa família. Falei dos vícios do meu pai, do homem que um dia eu conheci e que desapareceu lentamente, consumido pelas escolhas erradas, pelos negócios sujos. Contei sobre as dívidas que nunca tinham fim, e sobre as perseguições, ameaças e sequestros que me tornaram uma prisioneira em minha própria vida. Era um peso que carregava sozinha, mas naquele momento, entreguei tudo a Miranda.
Era como pôr meu coração à mesa, em um gesto de entrega que só Miranda poderia inspirar. Ela merecia saber, merecia entender o que eu vinha enfrentando, mesmo que, no fundo, eu temesse que o peso da verdade a afastasse para sempre.
Por um instante, enquanto ela suspirava, vi a sombra de um pensamento relâmpago cruzar seu olhar. Não a culparia se ela decidisse ir embora, me deixar para trás junto com todos os segredos e riscos. Era uma reação que eu já esperava. Só que, para minha surpresa, ela não o fez. Em vez disso, Miranda se inclinou lentamente e pousou um beijo suave em meus lábios, um gesto tão terno e inesperado que senti meu coração disparar.
Ela se afastou apenas o suficiente para que eu pudesse ver a determinação em seu olhar, uma promessa silenciosa que eu nunca vira antes. E então ela disse, com uma voz firme e serena:
— Vou resolver isso.
As palavras eram simples, mas carregavam uma força inabalável. Naquele instante, percebi que Miranda não era apenas alguém que eu queria proteger — ela era também alguém que eu precisava. Alguém que não seria intimidada pelas sombras do meu passado, que não me deixaria afundar naquele abismo.
E, de alguma forma inexplicável, acreditei. Eu acreditei em sua promessa, e naquele instante, pela primeira vez em muito tempo, me permiti respirar um pouco mais aliviada.
Como uma tola, eu finalmente pude ver o que sempre esteve estampado na minha frente:
— Vamos resolver isso juntas. — Eu respondi, e ela sorriu.
Sim, vamos resolver isso juntas, porque nós temos um relacionamento.
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Not a Relashionship
Roman d'amour"Andrea e eu não temos um relacionamento." Miranda Priestly, a icônica e impenetrável editora-chefe da revista Runway, mantém uma fachada de controle absoluto sobre sua vida pessoal e profissional. Conhecida por sua frieza calculada e um estilo de l...