Liability

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Nunca fui desorganizada, me considero até metódica. Escolher o final da tarde hoje para começar a arrumar minhas malas me pareceu mais leve sem o senso de obrigação que a manhã costuma trazer e sem a ansiedade que a noite me presenteia. Antes de começar, abri todas as janelas e cortinas do apartamento, deixei Lily na poltrona me olhando curiosa. Observo por um instante seu lacinho, ela é uma maltês menos agitada que a maioria. E mais branquinha do que eu posso descrever. Ao contrário do que pensam, ela não foi comprada. Ganhei de presente de um dos poucos romance que engatei aqui em Columbus. Meu vizinho, Willian, ou único-amigo, como costumo chamar, dizia que tudo deu errado quando eu decidi nomear a cadelinha que ganhei de presente com o nome que minha ex namorada dizia querer chamar sua filha, caso tivesse uma. Talvez eu tenha errado. Em contar para o Willian, é claro.
Pés descalços, um dos únicos vestidos que tenho e o cabelo trançado. É quase como se eu já estivesse em Lakewood. Pego a minha mala e pela primeira vez absorvo as palavras de ontem, a conversa com Stephen, a fé que ele depositou em mim e o que eu estou realmente prestes a fazer. Quando vim embora, trouxe comigo tantas coisas, mas nada do que se pode vestir eu tenho. Me desfiz de tudo com o tempo. Faz parte da futilidade humana pensar que receber uma repaginada pode nos modificar de dentro pra fora e não só o contrário. Nada do que me veste hoje me faz me sentir algo além de um fardo. Algo pesado demais para ser carregado por qualquer um que tente. Toda essa melancolia já me faz me sentir mesmo em casa.
Nenhum exagero, "não levarei minha casa comigo, não vou passar tanto tempo fora assim", digo à mim mesma. Não tenho hábito de usar sapatos desconfortáveis, então não os arrastarei comigo. Camisas, jaquetas, xadrez... Calças. Tomara que eu ainda entre nas que escolhi. Algo especial que não pareça tão especial, é o que estou procurando. Apenas para o caso de eu acabar encontrando com quem não quero me encontrar. Sou um fracasso até na auto enganação. Quero tanto encontrá-la que prefiro não encontrar e acredito ser melhor assim. Me destraio do meu próprio objetivo e me adentro no armário atrás de uma caixa que talvez seja a única coisa da qual eu não me desfiz até hoje, de tudo que trouxe pra cá. Encontrei. Uma caixa de madeira entalhada, com as dobradiças enferrujadas. Dentro dela, flores secas, um frasco de perfume vazio e cartas. E um desenho. Não tenho muita prática nessa área das artes, mas havia algo naqueles olhos que me fazia querer estampar a imagem deles em todo lugar. O frasco com um adesivo envelhecido e amarelado, com a perfeita ortografia em tinta preta "Agatha". Ainda consigo identificar cada uma das flores, mas antes que as memórias tomem conta de mim, fecho a caixa e a devolvo para o lugar. Já nem presto atenção no que estou fazendo e encerro. É só uma mala, é só uma viagem curta. Repito isso para mim mesma tantas vezes que acabo percebendo que eu mesma deixei tudo mais irritante.
Abro o computador e checo pela terceira vez se está tudo certo para a minha hospedagem. Fiz o possível para ficar o mais distante possível do endereço de minha mãe. Apesar de saber que o destino age como quer, tenho esperanças de não esbarrar com ela. Ou que talvez eu esbarre sim, e isso abra as portas para o que estou procurando.
Quando alguém se muda de cidade, especialmente quando nem sequer muda de Estado, é esperado que se faça e receba visitas. Fazem quatorze anos que eu saí de Lakewood. Fazem quatorze anos que não vejo minha mãe. Sempre tentei levar em consideração o fato de que, se não estivesse sozinha, ela teria feito mais por mim. Mas então eu me lembro que algumas coisas são escolha sim. Não me lembro de quando, exatamente, me dei conta de que ela não gostava de mim. Ou não gostava de ser mãe. Ou os dois. Ela costumava me dizer coisas tão rudes e ásperas que era difícil compreender como eu saí dali, daquele ventre. Ainda me lembro da angústia seguida por dúvida, queria mesmo saber se eu era tudo que ela dizia. Se era mesmo uma grande responsabilidade, uma pedra no caminho dela. Me lembro até hoje da primeira história que criei, com uma verdadeira megera como personagem. A chamei de Eleonora, como uma homenagem à altura. Minha mãe se chama Evanora. Não demorou para que ela encontrasse meu primeiro caderno e ligasse os pontos. Foi a primeira vez que a vi em silêncio e a primeira vez que eu queria muito poder ouvi-la. Tinha dezesseis anos quando aconteceu. Nunca mais parei de escrever. Algumas pessoas diziam que era minha maneira de fugir, eu gostava disso. Mas levou alguns anos para que eu fosse realmente embora. Para que eu fosse salva.

Take me back (Fanfic Agathario)Onde histórias criam vida. Descubra agora