Sun Bleached Flies

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Passei a última noite da pior forma possível. Comi algo leve antes de me deitar, nada de álcool, mas a minha mente fez parecer que uma tempestade aconteceu aqui. Parte de mim quer resolver as coisas de alguma forma, tentar acessar isso que eu guardo comigo há tantos anos e me apavora o quanto a verdade pode ser feia, às vezes. Eu nunca menti para Rio, desde que nos conhecemos, eu não lembro de já ter sido tão honesta assim com alguém, também nunca mais fui outra vez. E foi assim que estraguei tudo. Eu tinha um buraco dentro de mim, algo que somente alguém que anseia desesperadamente pelo amor e aprovação de uma mãe pode compreender. Permitir que Rio tivesse acesso à toda minha dor, a tornou parte de tudo isso. Eu não conseguia superar nada daquilo, e por mais que estivesse tentando seguir em frente, até mesmo olhar pra Rio me lembrava de tudo.
Meu pai foi embora quando eu tinha dois anos de idade. Não via mais sentido em ter uma vida com minha mãe e simplesmente me incluiu nisso. Ela insistia em dizer que havia sido abandonada, mas se ela era a adulta e eu uma criança, bom, a abandonada aqui fui eu. Não tenho memórias dele, a não ser as fotografias. Muitas vezes me peguei fantasiando em como seria ter crescido com ele, especialmente sabendo com quem ele me deixou. Evanora ficou amarga. Não tem outra maneira de descrevê-la, senão essa. De repente, não era mais ela quem estava ali, mas sim sua angústia, raiva e solidão. Nunca se permitiu casar outra vez. Para ser honesta, nunca mais testemunhei minha mãe amando qualquer pessoa ou coisa. É ridículo como me incluo nisso.
Por muito tempo, minha tia Lilia foi como um farol em minha vida. Tirava meus pés do chão e me transportava para outra realidade, brincava dizendo que podia ver meu destino e que seria brilhante. Dizia que eu escreveria minha própria história. No meu primeiro livro publicado, foi para ela a minha dedicatória. Perdê-la foi a pior experiência de toda a minha vida, mas nunca esqueci suas palavras. Sem ela, eu provavelmente teria me tornado um reflexo de minha mãe. Sou grata pelo jardim sem esperanças que minha tia regou enquanto viveu. Não floresço mais como antes, mas certamente me lembro da sensação.
Tomei um café no hotel e decidi dirigir até o parque que eu costumava frequentar, levando Lily comigo. Para a minha surpresa, ela parece mais desconfortável do que eu. Me sento num banco e Lily tarda, mas resolve explorar os arredores. Estamos longe do lago, mas começo a cogitar me aproximar mais tarde. Passa pela minha memória a primeira vez que senti minhas pernas bambearem, meu coração acelerar e minha respiração falhar. Minha primeira paixão. Claro, eu não entendia dessa forma no começo. Achava que o amor apareceria para mim de calças e não mini saia e top de crochet. Ou pelo menos era assim que eu ouvia quase todo domingo na igreja. Eu realmente não me sentia em casa naquele lugar, mas havia uma estúpida sensação de gratidão, acreditava que era aquilo que mantinha minha mãe viva. E para o meu azar, ela realmente vivia para isso.
Embora as coisas caminhassem na minha vida amorosa, eu mantinha segredo. E evitava o máximo que eu podia. Até que as coisas ficaram estranhas aos olhos dos outros. Vinte e três anos e nenhum namorado, nem sequer um amigo próximo demais que abriria margem para má interpretação. Eu ainda queria ser salva, queria que Deus olhasse para mim de onde quer que ele estivesse e me refizesse. Tinha medo que o ódio da minha mãe finalmente se concretizasse, sentia que seria colocada pra fora de casa a qualquer momento. Foi o que me fez desistir de contabilidade por tempo indeterminado e procurar um emprego. Me lembro de visitar a biblioteca do Sr. Vidal toda semana, religiosamente. Quando ele mencionou que precisava de uma bibliotecária sem que eu sequer mencionasse o que eu precisava, achei mesmo que Deus me amava o bastante para me salvar. E certamente amava. Mas seu milagre não foi o trabalho.
Nunca escrevi tanto como naquela época, também nunca li tanto. Isso quase me bastava, quase colocava tudo nos eixos. Até que eu a conheci. Ainda não sei dizer se tudo foi realmente tão rápido assim ou se eu perdia a noção de tempo quando estava com ela. Eu costumava correr tanto, mas eu sempre soube que isso poderia acontecer e dizia para mim mesma "quando for pra ser, será". E realmente foi. Quando estava com Rio, havia uma parte de mim que tinha certeza que em nenhum universo eu agradaria minha mãe. De maneira alguma, eu jamais poderia ser quem ela gostaria que eu fosse. Ainda que eu nunca tivesse cedido à curiosidade antes, eu amaria Rio. Se meus olhos cruzassem os dela, em qualquer lugar do mundo, eu me apaixonaria. Mesmo que fôssemos outras ou outros, se não fôssemos da mesma terra ou órbita. Amaria Rio ainda que ela fosse uma planta no canto da sala. Eu até hoje não tenho plantas em casa, nunca soube cuidar delas. Eu também não soube cuidar de Rio.
Retornando ao hotel, eu não preciso de muito para conseguir um endereço. Só algumas perguntas e eu chego ao resultado. Eu não tinha o hábito de fuçar a vida de Rio, sabia que isso só serviria para me afundar em doses homeopáticas de "e se?", mas sabia o que ela fazia. Quando seu pai faleceu, Rio e sua mãe ficaram com a casa e, consequentemente, o enorme jardim. Mas só uma das duas sabia cuidar daquelas flores como ele, e é claro que era Rio. Ela fez disso a sua vocação. Rio é perfumista. Começou fazendo fragrâncias simples e artesanais para a família e amigos com o que conhecia do jardim, até ir bem além do floral e comum. Tinha tanta habilidade com isso quanto tinha com a terra, brincava dizendo que a macieira que havia no jardim conversava com ela. Eu sabia que ela trabalhava com isso, só não tinha dimensão do quão enorme tudo isso havia se tornado. Sua marca de chama Eden. Dei uma risada tão inevitável quando a balconista do hotel me informou, que pela sua expressão, percebi que ela passou a me estranhar.

-  Srta. Agatha, o que é tão engraçado?

-  No nome? Nada. Macieiras aparentemente conversam demais.

-  Perdão, não consegui entender.

-  Tudo bem. Pode anotar para mim o endereço? Passarei lá amanhã assim que acordar.

-  Claro, deixe-me anotar.

Voltei ao quarto, comecei a procurar na internet qualquer coisa para jantar enquanto tentava me familiarizar com a ansiedade constante. Eu sei que vou até ela. Tenho medo de como as palavras vão sair de minha boca, tenho medo de que as palavras nem sequer saiam. Me lembro de como costumava gostar de violetas e de como, eventualmente, roubava uma ou outra do jardim e colocava presa na orelha de Rio. Ela dizia que roxo era minha cor, enquanto verde seria a dela. Um dia, eu estava indo encontrá-la no bar que costumávamos ir toda semana. Ela estava de roxo. Poderia sim ser minha cor, mas é inegável o quão linda ela estava. Até que estendeu a mão pra mim com um frasco de perfume, o primeiro e único que me deu. Com um adesivo que dizia "Agatha". Borrifei no meu pulso e imediatamente reconheci. Violetas. De alguma forma, eu sabia. Podia sentir, de verdade. Rio me amava. E Deus, certamente, também.

Take me back (Fanfic Agathario)Onde histórias criam vida. Descubra agora