Primavera. Uma pessoa com suas condições mentais perfeitas acordaria disposta essa manhã, com o cheiro de rosa-da-carolina das plantações do vizinho invadindo sua casa pela janela, sem pedir licença. Não é o meu caso. Não há flores suficientes em Ohio que possam aliviar a tensão que ocupa meus pensamentos agora. Nunca fui boa com prazos, mas nada que me levasse à uma espiral de tortura e auto cobrança. Ou pelo menos, não até agora.
Conseguir um contrato com uma boa editora é a melhor coisa que se pode acontecer para qualquer um que queira viver da escrita, exceto quando você precisa terminar em 4 meses um livro que ainda nem começou. E quando a sua caixa de e-mails está lotada de recados não tão carinhosos do agente que é responsável por você e que percebeu que é sim um problema faltar tão pouco tempo para o prazo e ele não ter recebido sequer uma prévia do seu próximo trabalho até agora.
Me forço a levantar da cama, sinto um arrepio na espinha quando meus pés tocam o chão. Gostaria muito de justificar isso com a temperatura do piso, mas piso laminado nunca está realmente frio. É normal sentir de repente um cheiro que você já não tem acesso há mais de 10 anos? Um frescor de maçã vermelha molhada, ou pelo menos era assim que eu chamava, impregnou o meu nariz por alguns segundos e foram suficientes para me fazer repensar se seria mesmo uma boa ideia voltar àquela terra amaldiçoada. Nunca houve maldição, mas para mim, certamente ser queimada numa fogueira soaria mais confortável.
O café esfria enquanto abro os comentários da última publicação de minha página. É claro, ela não é administrada por mim. Depois de um acidente numa noite (e algumas garrafas de vinho) resolveram tomar o acesso de mim. Nunca achei que um mamilo poderia causar tanto rebuliço em minutos. Rolando por entre essas carinhas que não conheço, vejo esses leitores que dizem enxergar através de mim, como se fôssemos ligados: o artista, a obra e o admirador. Mas o que é que eles sabem sobre mim? Eles estariam comigo se soubessem mais sobre mim? Eu me faria menos perguntas e falaria menos com as paredes se eu conversasse com alguém. Meus amigos dizem que eu os afasto, e talvez seja verdade. Há mensagens no meu telefone que não respondo há dias. A questão é que eu não sei quem sou quando não estou escrevendo. Quando não tenho nada pra dizer. Houve um momento da minha vida em que eu fui muito mais que isso, mais do que minhas palavras poderiam dizer. Havia muito em mim. Havia amor em mim.
Desisto de evitar o inevitável e vou para o chuveiro com a esperança de uma criança, como se espuma e patinhos de borracha pudessem mudar todo o rumo do meu dia. Mas sem os patinhos. Encaro o espelho por alguns minutos. Quarenta e seis anos e não fossem as caminhadas com a Lily pela manhã, eu provavelmente estaria pior. Mas não tenho muito do que me queixar. Traços sutis, cabelo castanho numa altura abaixo dos ombros, olhos que um dia foram chamados de azul-oceano, estatura normal e quase sempre num manequim tamanho 40. Gosto das minhas mãos. Provavelmente porque gesticulo demais. Ou porque ultimamente elas tem sido minha companhia no sábado à noite. A água percorre pelo meu corpo numa temperatura tão aconchegante que quase me faz acreditar que vai mesmo mudar meu dia. Mas logo me vejo fora do banho, me arrumando para um almoço com porções de pressão ao molho de cobrança. E uma dose de sarcasmo com limão siciliano, para o agrado de um agente impaciente e italiano. Eu precisava mesmo dos patinhos agora.
O restaurante foi ideia dele, eu nem ao menos verifiquei, felizmente sou uma grande entusiasta de massas. Só nem tanto de tomates. E sim, eu nasci em Ohio. Por incrível que pareça. Acabo me deparando com duas surpresas: comida mexicana e Sthephen está de preto. Acho que está tentando me passar seriedade. Sento-me à frente dele e antes que eu diga qualquer coisa, ele segura minhas mãos como se tudo que vem a seguir fosse mais um apelo do que um pedido. Escolho no cardápio o que menos pode me provocar uma bagunça no estômago nesse momento, apesar dele já estar revirando. Pimenta seria mesmo uma péssima ideia. Sthephen não parece estar com muito apetite. E graças a Deus o silêncio entre nós se quebra.— Agatha, você se lembra desse lugar?
Eu olho ao redor e não consigo me lembrar de nada. Eu nem sequer como comida mexicana a não ser que essa seja a única opção. E só existem interrogações na minha cabeça até que eu olho ao redor e... porra. Eu trabalhava aqui. Não no restaurante mexicano, mas na lanchonete que havia aqui. Eu sempre achei o hambúrguer daqui horrível, mas não sabia que havia fechado. Tudo nessa rua continua exatamente igual.
— Quando eu encontrei o seu blog, você ainda trabalhava aqui. Oito anos atrás. Você estava tentando ser "independente". -Ele fez questão de fazer as aspas com os dedos-
— Sim, Sthephen, eu era garçonete e...
— E escritora. Você sempre foi escritora. E quando eu encontrei você, quer dizer, algo que poderia ser o seu primeiro livro de sucesso, mesmo desconfiada, você me disse onde trabalhava e eu vim até você. Conversamos enquanto você fingia que eu era só um cliente carente e isso foi o início do que se tornou a sua carreira hoje.
— Eu sei onde você quer chegar.
— Então me deixe terminar. Depois de um ano trabalhando juntos, mexendo aqui e ali, pronto! Seu primeiro livro! Foi um sucesso. A editora se orgulhou pela primeira vez de você e estendeu ainda mais a confiança sobre mim. E aí veio mais um, com sequência, por sinal, muito aguardada. Um suspense com um quê de romance fúnebre, que garantiu uma nova leva de fãs para o seu trabalho e... dois anos até aqui. E mais nada.
— Sthephen, eu sei o quanto você apostou em mim e sei o que precisamos fazer agora, mas o prazo, bom, eu não posso garantir...
— Eu preciso que você entenda que a renovação do seu contrato depende disso. Foi o que impuseram, você assinou o contrato ciente disso. Nós investimos muito em você e o retorno está bem exposto até hoje. Um belo apartamento na cidade grande, um carro, um cachorro fresco -Eu odeio que falem da Lily- e os seus constantes excessos.
— Eu tive uma ideia, ainda estou pensando em como pôr em prática. Eu pretendo voltar para a minha cidade, talvez algo naquele lugar me desperte isso que perdi.
— E com "algo" você quer dizer traumas?
— Não. Quer dizer, também. Eu vivi muitos anos difíceis em Lakewood, mas os meus cadernos eram meu refúgio. Tudo que eu criava fazia tudo fazer sentido, fazia parecer que valia a pena. Quantos e quantos personagens nasceram das horas que eu passava observando aquele lago nos finais de tarde...
— Então é isso, você quer voltar para sua cidade em busca de inspiração?
— É por aí, vou atrás das minhas raizes.
— Seja como for, Agatha, eu espero que você não se perca ainda mais tentando se encontrar de novo. Eu sei que aquilo que eu vi em você 8 anos atrás, continua em você. E não é querendo te pressionar, mas você tem 3 meses e 27 dias pra isso. Boa caçada atrás de si mesma.
Nada faz as coisas tão reais quanto serem ditas. Quando são apenas ideias, ainda há pra onde correr. No meu caso, ideias quase sempre se tornam dívidas.
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Take me back (Fanfic Agathario)
FanfictionAgatha Harkness é uma escritora de suspenses dramáticos que se vê com um bloqueio considerável há mais tempo do que consegue contar, fazendo-a se questionar se ainda existe ali qualquer resquício de sua criatividade. Com o gênio impulsivo de sempre...