Enquanto os meninos suavam e se movimentavam na roda de capoeira, Rita estava ali, sentada em cima do muro, com um sorriso no rosto, observando a alegria deles. Entre um trago e outro do cigarro de palha que Gato lhe deu, ela apreciava o espetáculo, admirando os giros e as acrobacias. O sol brilhava forte, refletindo nas peles suadas e na energia vibrante do momento.De repente, a atenção de todos se virou para Dora, que apareceu com uma ousadia nova. Usava as roupas do Professor, com os cabelos trancados para trás, parecendo um garoto. A transformação chamou olhares, e o burburinho aumentou.
—— Bom dia, Professor! Deu umas pernadas, é? —— brincou Querido de Deus, com um sorriso de malandro.
—— Não, eu vim trazer um amigo —— respondeu o Professor, orgulhoso.
Dora saiu de trás dele, toda cheia de confiança.
—— O que é isso? —— Pedro perguntou, com um olhar curioso.
—— Eu vim aprender a lutar capoeira com o Querido de Deus! Agora eu também sou Capitão de Areia! —— declarou Dora, cheia de bravura.
—— Tá achando que vestida assim vai virar homem? —— questionou Pedro, cruzando os braços e tentando esconder a surpresa.
—— Virar homem? Não, não! Eu quero ser que nem Joana d'Arc que o Professor falou, quero ser que nem Rita! —— respondeu Dora, com firmeza.
Boa Vida, sempre pronto para uma piada, não deixou passar a chance.
—— Mas Rabo de saia é homem! Até fuma, pra ser homem tem que fumar!
—— Que besteira, Boa Vida! Deixa a menina! —— rebateu Rita, com um sorriso no canto dos lábios.
Pedro, incomodado, resmungou.
—— Tô cansado dessas histórias de maria macho de vocês.
Mas Rita, com um brilho nos olhos, respondeu.
—— Eu até que tô gostando.
A tensão no ar mudou quando Rita se aproximou de Pedro, os olhares se cruzando, cheios de provocações e romantismo.
—— Bala pra mim é mulher —— ela afirmou, num tom de brincadeira, mas com um fundo de seriedade que fez o coração de Pedro disparar.
A roda de capoeira parou por um instante, a atenção de todos voltada para aquele momento, enquanto as risadas e as provocações dançavam no ar como as movimentações de capoeira, criando uma atmosfera cheia de vida e promessas.
(...)
Com a aceitação de Dora no bando, as dinâmicas entre os Capitães da Areia começaram a mudar. A cada ação furtiva, cada plano traçado sob a luz da lua, Dora se mostrava mais integrada, fazendo com que os meninos a respeitassem cada vez mais. No entanto, Rita não conseguia ignorar uma tensão peculiar que surgia entre Dora e o Professor. Havia algo no jeito como eles trocavam olhares, um brilho em seus sorrisos que deixava Rita intrigada.
Era durante os momentos em que todos estavam reunidos, planejando o próximo roubo ou apenas descansando após um dia cheio de aventuras, que essa energia se tornava palpável. O Professor, sempre sério e centrado, parecia relaxar quando Dora estava por perto. Ele frequentemente a chamava para se sentar ao seu lado, seu olhar se suavizando enquanto ela falava de suas aspirações ou compartilhava alguma ideia.
A noite se desenrolava tranquila, a brisa do mar trazendo um alívio após um dia intenso. Rita se sentou ao lado de Dora, admirando o jeito concentrado dela enquanto alinhavava as roupas rasgadas que alguns meninos trouxeram. Havia uma cumplicidade no ar, um entendimento que crescia entre as duas.
—— Você tá pegando o jeito da coisa —— Rita elogiou, com um sorriso sincero.
—— É, eles tão me aceitando bem —— Dora respondeu, animada, mas com um brilho tímido nos olhos.
—— Capitão aceita capitão —— Rita brincou, e as duas riram juntas, o som leve como a espuma das ondas.
Nesse momento, a figura de Sem-Pena se aproximou, coçando a cabeça como se estivesse enfrentando um furacão. Ele parecia desesperado.
—— Ô rabo de saia! Tô com uma coceira do cão! —— gritou, a frustração evidente na voz.
—— É piolho, Sem-Pena! Vá pra lá que eu vejo depois! —— respondeu Rita, sem paciência, mas com um tom brincalhão.
Sem-Pena apenas concordou e se afastou, em direção a outros meninos, alheio à conversa que se desenrolava entre as duas.
Dora, com um ar pensativo, olhou para Rita e disse:
—— Sabe, Rita, pra eles você é mais do que só um menino, sabia?
Rita franziu a testa, confusa.
—— Do que tá falando?
—— Alguns te veem como mãe, irmã... até amante —— Dora disparou, os olhos cravados nos de Rita, esperando por uma reação.
—— Amante? —— Rita repetiu, a palavra saindo de seus lábios como se tivesse um peso inesperado. A mente dela começou a girar com as implicações do que Dora estava dizendo.
Ouvindo isso, Rita se lembrou das trocas de olhares com Pedro, da tensão que pairava no ar entre eles, e até do beijo que não foi falado. Ela não havia pensado que, para os meninos, esse laço pudesse ir além da amizade ou da camaradagem.
Rita sentiu o rosto arder, então mudou de assunto, virando-se para Dora e tentando afastar os pensamentos que o nome de Pedro Bala havia trazido.
—— E tu, Dora? Tem família? —— perguntou, ajeitando o cabelo e fazendo de conta que a conversa de antes não tinha acontecido.
Dora baixou o olhar, o rosto sério.
—— Tinha, né? Minha mãe morreu de bexiga... Desde então, tô por minha conta.
Rita ficou em silêncio, sentindo o peso daquilo. Ela sabia o que era a solidão, sabia o que era se sentir solta no mundo sem ninguém pra proteger. Mas, pra ela, era um pouco diferente.
—— E os teus pais, Rita? —— Dora perguntou, querendo entender mais da amiga que tanto admirava.
Rita respirou fundo, mirando o mar que se estendia ali perto, como se buscasse alguma resposta nas ondas que iam e vinham.
—— Minha mãe é Iemanjá —— respondeu com um sorriso sereno, orgulhosa.
Dora ficou confusa, mas se calou, respeitando aquele instante. Rita sempre fora mais misteriosa, e aquela resposta parecia guardar um mundo dentro dela.
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﹙✓﹚ corações de areia, pedro bala.
Fanfiction⏳| Ritinha é uma jovem que, abandonada pela família, aprendeu a viver por conta própria. Marcada pela dureza da vida na rua, ela é acolhida pelos Capitães da Areia, um grupo de meninos de rua liderados pelo destemido Pedro Bala. Lá, ela descobre a s...