16. filha do mar.

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                      Quando o amanhecer se insinuou pelas frestas do trapiche, trazendo consigo a luz morna do sol, Rita despertou com um sobressalto

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                      Quando o amanhecer se insinuou pelas frestas do trapiche, trazendo consigo a luz morna do sol, Rita despertou com um sobressalto. A dor aguda e ardente que percorria seu ventre a fez abrir os olhos com dificuldade, e o pânico logo tomou conta de seu coração. Ela tirou cuidadosamente os braços de Pedro ao redor do seu corpo, mas a agonia a fez tremer.

Ao olhar para baixo, um horror se abateu sobre ela. O sangue escorria da ferida da sua barriga, a marca cruel da bala que a atingira. O buraco, sujo e infectado, pulsava com uma dor lancinante, como se a vida estivesse escorrendo dela a cada instante. Um gosto metálico se formou em sua boca, e a tontura a envolveu, a fazendo sentir-se como se estivesse flutuando entre a realidade e a escuridão.

Rita, sem fazer esforço, deslizou os dedos pelo rosto de Pedro, deixando um leve carinho que era ao mesmo tempo um gesto de despedida e gratidão. Um sorriso brotou em seus lábios, mas logo se desfez na tristeza do reconhecimento.

Ele não era dela; ele era de Salvador, do mundo, e ela sabia que sua jornada tinha que continuar, mesmo que isso significasse deixá-lo para trás.

Com um último olhar para o corpo adormecido de Pedro, Rita se levantou com cuidado, tentando não acordá-lo, e começou a caminhar lentamente para fora do trapiche. Cada passo era uma batalha contra a dor pulsante que a consumia, e as mãos sujas de sangue se tornavam um lembrete constante da ferida que a marcava.

Ela seguiu em direção à praia, sentindo a areia fria sob os pés descalços e o cheiro do mar se misturando ao ar fresco da manhã. O sol começava a se erguer no horizonte, tingindo o céu com tons de azul claro, mas a beleza do amanhecer não conseguia apagar a dor que a consumia.

Rita avançou pela areia, cada passo mais decidido que o anterior, enquanto as ondas se quebravam suavemente ao seu redor.

A água, fria e salgada, parecia abraçar suas pernas e, com cada onda que vinha, ela sentia a dor pulsante em sua barriga. Mas a dor física era nada comparada à dor da saudade, à ausência da mãe que sempre desejou ter por perto.

—— Eu quero ficar com a minha mãe, quero ficar no mar com Iemanjá!

A voz de Rita ecoava pelo ar, cheia de desespero e esperança. Ela continuou a caminhar, sentindo a água subindo até a cintura, o frio do mar a invadindo, trazendo um alívio temporário para a dor que ardia em sua ferida.

A água salgada cortava como facas, mas naquele momento, Rita não se importava. Deixou-se levar pelas ondas, entregando-se ao seu chamado, como se a força do mar pudesse curar suas feridas e levá-la para mais perto da mãe.

Com cada onda que a envolvia, ela fechou os olhos e imaginou o calor do abraço materno, a voz suave que a acalmava, o cheiro da terra molhada depois da chuva.

—— Iemanjá, me leva com você —— sussurrou, sentindo as lágrimas se misturarem ao mar.

E, assim, Rita se deixou levar pela água, permitindo que as ondas a envolvessem, como um último ato de entrega à vida, ao amor e ao desejo de reencontrar sua mãe.

Naquele momento, o mundo à sua volta se dissipava, e ela estava em paz, flutuando entre o desejo e a dor, entre o mar e a terra, entre a vida e a morte.

Rita morreu no mar.

Entregando-se às águas que sempre chamaram por ela. Cada onda que a envolvia era como um convite, um abraço gelado que a levava para longe da dor, das cicatrizes, das memórias amargas. Ela não se deixou vencer pela infecção da bala, mas fez uma escolha, como uma rabo de saia que nunca se conformou com as correntes da vida.

Com o corpo enfraquecido, mas a alma forte, Rita flutuou em direção ao horizonte, onde o céu e o mar se encontravam em um azul profundo. A água salgada envolveu seu corpo, e ela fechou os olhos, ouvindo o murmúrio das ondas e o sussurro de Iemanjá, a mãe d'água, que a acolhia em seus braços.

À medida que a consciência se esvaía, a imagem de Pedro e do trapiche se dissipava, e com um último suspiro, ela deixou a vida para trás. O mar, testemunha silenciosa de sua entrega, a acolheu em seu seio, como um segredo guardado entre as ondas.

Rita, a rabo de saia, encontrou a paz que tanto buscava, e na vastidão do oceano, finalmente se sentiu livre.

Assim, como uma estrela que se apaga, sua luz se foi, mas sua história continuaria a ecoar entre os meninos do trapiche, entre os sussurros das ondas e as preces de quem ficou. Rita havia partido, mas sua alma, agora levada por Iemanjá, viveria para sempre nas profundezas do mar, em harmonia com os orixás, eternamente livre e em paz.

(...)

Quando Pedro acordou, a luz do sol mal penetrava as frestas do trapiche. O cheiro de sal e sangue misturava-se no ar, e ao abrir os olhos, ele percebeu que o chão estava coberto pelo líquido quente que pulsava com a vida que se esvaía de Rita. Seu coração disparou, e uma onda de desespero o arrastou como se fosse o próprio mar.

Sem pensar duas vezes, ele saltou do chão sujo e correu para fora, a areia fria sob seus pés descalços. O vento cortante parecia sussurrar seu nome, e quando olhou para o horizonte, viu as ondas quebrando na praia. Sentiu uma conexão instantânea, como se Rita estivesse ali, entre as ondas que dançavam ao sabor da maré.

—— Rita! —— gritou, a voz rasgada pelo desespero, mas só o eco de seu próprio lamento retornou como resposta.

Ele caminhou até a água, cada passo mais pesado que o anterior, a lembrança de seu sorriso preenchendo a mente com um calor que agora se misturava ao frio do medo.

A imagem dela, rindo, brincando, o calor de seus braços ao redor dele, tudo isso o consumia. Rita era dele, mas também era do mar agora. Ele sabia que ela tinha feito sua escolha, que Iemanjá a tinha chamado de volta para casa, mas o pensamento não tornava a dor mais leve. O desespero se transformava em raiva, e a raiva em uma determinação desesperada.

—— Não! Não pode ser assim! —— Pedro se deixou levar pela correnteza de suas emoções. Ele olhou para as ondas que se erguiam e caíam, e a cada movimento, parecia que o mar o atraía mais, como se quisesse lhe mostrar onde Rita agora repousava.

Pedro se sentou na areia, sentindo a brisa fria que o envolvia, e a dor na barriga parecia um eco do buraco que ela deixava em seu coração. Ele se lembrou de suas promessas, do que haviam sonhado juntos. Agora, o que restava? Ele ergueu os olhos para o céu, a raiva se transformando em uma súplica silenciosa.

—— Se você estiver lá, Rita, se ainda puder me ouvir —— disse ele, a voz tremendo, —— Eu nunca vou te esquecer. Vou te encontrar de novo, seja onde for.

﹙✓﹚ corações de areia, pedro bala. Onde histórias criam vida. Descubra agora