02. carrosel de areia.

521 53 2
                                    

           Já se passavam uns dias desde que Sem-Perna tinha sido mandado pro palacete

Ops! Esta imagem não segue nossas diretrizes de conteúdo. Para continuar a publicação, tente removê-la ou carregar outra.


Já se passavam uns dias desde que Sem-Perna tinha sido mandado pro palacete. Era um trabalho perigoso, mas ele cuidava de tudo, como Pedro Bala havia planejado. Mesmo com os pequenos roubos que faziam pra se manter, o que conseguiam nunca era o bastante. A fome, a necessidade... essas coisas batiam à porta deles como maré forte, sem descanso.

Enquanto isso, a cidade fervia com o burburinho de uma novidade: o Padre José Pedro, sempre bondoso com a criançada, tinha conseguido um carrossel pros meninos e meninas do Bonfim. Aquele homem era um santo, corria atrás de tudo que pudesse dar um sorriso aos pequenos. No meio do povo que se aglomerava ali, entre risadas e gritos de empolgação, estava o Pirulito, zeloso como nunca. Ele tinha o coração mole pras coisas de Deus e cuidava de tudo ao lado do padre, organizando a fila, acalmando as crianças, com aquele jeito sereno que já era sua marca.

O carrossel brilhava sob o sol, girando devagar, enquanto os olhos das crianças brilhavam ainda mais. Era um momento raro, em que a diversão parecia ganhar da miséria, mesmo que por um instante. Pirulito, com as mãos juntas, fazia uma breve oração antes de deixar os pequenos subirem no brinquedo, pedindo a proteção da Nossa Senhora Aparecida pra abençoar cada um que subia ali.

Do outro lado da cidade, no trapiche, os Capitães da Areia esperavam notícias de Sem-Perna, ansiosos pelo que ele traria do palacete. Mas ali, no Bonfim, entre o sorriso das crianças e o carrossel girando, era como se o tempo parasse um pouquinho, trazendo uma paz que os meninos de rua raramente conheciam.

Os Capitães da Areia rodopiavam ao redor do carrossel, um verdadeiro pandemônio de risadas e zoeira. Enquanto algumas crianças do Bonfim se encolhiam, espantadas com a audácia dos meninos de rua, outros Capitães estavam largados por ali, observando o movimento com olhares curiosos e cheios de malandragem.

Gato, o mais bonito do bando, se aproximou de um grupo e deu uma piscadela para Rita, que o encarava.

—— E o Sem-Perna? Não vem não? —— perguntou, sem disfarçar a provocação.

Boa Vida, sempre com um ar de quem estava na moleza, resmungou. —— Aquele lá tá na vida boa, rapaz. Esqueceu da gente aqui, só pode.

Rita, com uma expressão firme, não deixou barato. —— Não fala besteira, Boa Vida. Sem-Perna não é disso, é nada.

Pedro Bala, de olhos atentos e jeito sério. —— Mas tá estranho, viu? O Sem-Perna vive nervosinho que só o cão.

Gato deu uma risada curta, sem perder o humor. —— E ele já foi calmo alguma vez?

A conversa foi interrompida quando o Padre João chegou, com um sorriso largo e alguns sacos de pão doce embaixo do braço. A criançada, que já gostava dele, se aproximou rapidamente.

—— Olha o que eu trouxe! Não tem pra todo mundo, mas vocês podem dividir! —— O padre disse, oferecendo os pães com carinho. A expressão de surpresa e alegria se espalhou pelo grupo.

Todos agradeceram, e Pedro Bala, partiu o pão e ofereceu um pedaço a Rita, que sorriu agradecida. Um dos meninos, ao ver o pão fofinho com açúcar polvilhado, disse encantado. —— Parece até aqueles sonhos de vitrine!

O Padre João riu, quase sem acreditar. —— Mas é de lá mesmo!

Boa Vida, sempre com sua língua afiada, soltou. —— E o padre roubou, foi?

Pedro Bala se virou na hora, sério.

—— Mais respeito com o padre!

Mas Boa Vida não se intimidou, olhando de canto. —— Mas ué... Se o padre não tem dinheiro, comprou doce de confeitaria com o quê?

O Padre João, num gesto honesto e com um sorriso, respondeu. —— Ele tem razão! Mas eu não roubei, não. Peguei da igreja, o dinheiro da caridade. Achei que era justo dar um pouco pra vocês.

Os meninos estouraram em risadas, comemorando o gesto do padre e agradecendo de coração. Aquela pequena doçura era um luxo raro, uma gota de bondade num mundo de dureza.

Naquela noite, debaixo do céu estrelado que brilhava como uma benção silenciosa, os Capitães da Areia se entregaram ao momento raro de serem apenas crianças. Rita, rindo solta, segurou firme na barra do carrossel, rodopiando com a turma.

Os meninos, num misto de gritos e risadas, deixaram de lado o peso do dia a dia, dos roubos, das fugas, e se permitiram apenas brincar.

Gato soltava um riso escancarado, enquanto Boa Vida, mais desajeitado, quase caía a cada volta. Pedro Bala, o líder firme e sempre alerta, relaxava ao ver a alegria estampada nos rostos de seus irmãos de rua. Ritinha, rodando, deixou os braços abertos, como se abraçasse o mundo, o vestido remendado flutuando, os cabelos soltos na noite.

Era como se cada volta do carrossel espantasse as mágoas, as durezas da vida, os medos que carregavam no peito.

Naquele instante, sob as estrelas da Bahia, eles voltaram a ser crianças brincando de sonhar, esquecendo-se, ainda que só por um momento, do peso que o mundo jogava em seus ombros tão jovens.

﹙✓﹚ corações de areia, pedro bala. Onde histórias criam vida. Descubra agora