O sol ainda vinha fraco, iluminando o cais de leve, mas Rita já avistava Pedro de longe, sentado ali sozinho, de braços cruzados, encarando o horizonte com o rosto marcado de hematomas e cortes. Desde que voltara da pesca, ele não tinha nem se aproximado do trapiche. Dormiu ali mesmo, no relento, carregando seu orgulho ferido.Rita se sentou ao lado dele em silêncio, olhando bem nos olhos dele. Aqueles machucados... Ela sabia, desde que os olhares entre Pedro e Ezequiel se cruzaram da última vez, que algo estava por vir. Só não imaginava que seria tão cedo. Pedro virou o rosto, com aquela cara de raiva e frustração, mas foi ela quem quebrou o silêncio.
—— Tá doendo? —— perguntou, o olhar preocupado.
Pedro suspirou, os olhos acesos de fúria.
—— Tá doendo meu ódio. Mas ele vai ver. Vou acabar com eles tudinho... não vai ter um que fique de pé!
Por um instante, um silêncio pesado pairou entre eles.
Então, sem pensar muito, Rita levou a mão até o rosto de Pedro, tocando os cabelos dele com cuidado, ajeitando umas mechas desalinhadas que caíam sobre a testa. Seus dedos roçaram de leve a pele dele, um carinho que parecia acalmar a tempestade que ele carregava dentro do peito. Ela tirou o cabelo do rosto dele e passou os dedos devagar na bochecha machucada, num gesto que misturava cuidado e ternura.
—— Eu vou cuidar de você —— disse, a voz baixa, cheia de promessa e afeição.
Por um instante, o mundo sumiu. Não havia trapiche, não havia mar, não havia ferida aberta de vingança. Era só Rita e Pedro, sentados lado a lado, a dor dividida, o carinho sincero. E ali, naquele instante, Pedro sentiu o toque de Rita como algo que ele nunca soubera precisar.
Rita não hesitou. Com um cuidado raro, foi encostando os lábios nos machucados de Pedro, um de cada vez, como quem beija as feridas de um irmão caído em batalha. Primeiro, um beijo leve na testa marcada, depois outro na bochecha roxa, e outro no queixo machucado. Cada toque, mesmo sutil, parecia um alívio na dor dele, como se os beijos dela fossem curando tudo, menos o orgulho ferido.
Quando chegou perto do corte no canto da boca dele, Rita parou, o coração acelerado. Mas antes que pudesse racionalizar, já tinha encostado os lábios ali também, num beijo rápido, cheio de silêncio e coisa não dita. Só que, naquele breve instante, foi como se todo o mundo parasse.
Ela se afastou de imediato, tentando esconder a confusão que sentia, mas Pedro, instintivamente, tentou puxá-la de volta, os olhos brilhando de um jeito que ela nunca tinha visto. Só que, antes que ele pudesse fazer qualquer coisa, Rita deu um passo pra trás, com aquele ar de quem controla a situação, e se virou, saindo do cais. Pedro, meio atônito, soltou um sorriso. Sentiu o peito inflar, uma mistura de orgulho e admiração pela ousadia dela.
E então ele se levantou e foi atrás, sem pressa, sabendo que agora havia algo novo entre eles, uma chama que só eles entendiam, mesmo que ninguém mais soubesse.
Entre as muralhas meio desmoronadas do trapiche, onde as paredes mal aguentavam as marcas do tempo e dos pés ligeiros dos moleques brincando de capoeira, Rita e Pedro se achavam. Caminhavam em círculos um ao redor do outro, feito dois animais ariscos, ora se aproximando, ora se esquivando, mas sempre com aquele olhar preso, como se fosse impossível desviar.
Pedro deu um passo à frente, o olhar firme e decidido.
—— Pra mim você é mulher, nunca foi menino —— murmurou, a voz saindo rouca.
Rita não respondeu, mas também não recuou. E foi só o tempo de Pedro puxá-la para mais perto, segurando-a com força, como se não quisesse deixar dúvida do que estava sentindo.
Quando os lábios se encontraram, foi diferente, sem pressa e sem medo. O beijo se transformou numa dança própria, meio desajeitada, meio urgente. Pedro deslizou os lábios pelo pescoço de Rita, e ela sentiu o arrepio subir por todo o corpo, apertando os braços dele como se precisasse se segurar, como se naquele momento ele fosse o único chão que ela tivesse.
As muralhas ali do trapiche pareciam assistir, testemunhas antigas de tantos segredos guardados, e agora, desse amor que teimava em crescer, mesmo onde tudo era quebrado e nada durava.
De repente, o som de passos ligeiros ecoou entre as ruínas do trapiche. Pirulito surgiu esbaforido, com os olhos arregalados, e Rita e Pedro se separaram num salto, o rosto deles ainda marcado pelo calor do instante.
—— Ô, Bala tá aqui, Professor! —— gritou Pirulito, a voz apressada, como quem sabe que o tempo é curto pra conversa fiada.
Pedro trocou um olhar rápido com Rita, e ela deu um sorrisinho disfarçado, ajeitando o cabelo com o mesmo cuidado de quem esconde um segredo. Sem demorar, Pedro acenou pra ela e seguiu atrás de Pirulito, já mudando o semblante praquele jeito sério e decidido de líder.
(...)
Pedro balançou a cabeça, os olhos fixos nas ruínas enquanto a lembrança da surra ainda pulsava na memória.
—— Foi Ezequiel e o bando dele... —— murmurou ele, com um toque de raiva na voz. —— Disseram coisas de Rita, disseram que a gente trouxe Dora pro bando porque Rita não dava conta do recado.
Professor, ao lado, cuspiu no chão, a testa franzida de indignação. —— Bostão é esse Ezequiel. Tem que ser muito frouxo pra se juntar em quatro pra bater num só.
Nisso, Dora e Rita surgiram, caminhando juntas, trocando risos e olhares cúmplices. Dora chegou primeiro, jogando o peso de um lado pro outro e com aquele jeito descolado.
—— Professor... tu viu que derrota, mermão? —— Ela riu, já sabendo a resposta.
Rita se achegou, cruzando os braços e soltando um riso maroto. —— Quatro contra um? Desse jeito até eu, né? Que covardia de gente que só tem peito na vantagem.
Pedro olhou para Rita, o orgulho dela transbordando, e se sentiu revigorado. De repente, as palavras de Ezequiel não pareciam mais tão pesadas. Afinal, ele sabia com quem podia contar, e entre eles, tinha um bando que valia mais que qualquer briga de rua.
Pedro chegou mais perto de Professor, os olhos brilhando e um sorriso malicioso no canto da boca, como quem vai contar um segredo de importância maior que ouro roubado.
—— Hoje, Rita me beijou —— sussurrou ele, um orgulho difícil de esconder.
Professor arregalou os olhos, surpreso. —— Beijou? Assim de graça?
Pedro deu de ombros, como quem tenta esconder a empolgação, mas o sorriso entregava tudo. —— É, me beijou duas vezes.
Dora e Rita vieram se aproximando rápido, com a determinação nos olhos que só elas tinham. Dora lançou um olhar desafiante para os meninos, o peito inflado de coragem.
—— A gente vai junto, igual Joana d'Arc —— soltou Dora, com um sorriso teimoso que mostrava que não ia aceitar um não como resposta.
Professor riu de canto, mas balançou a cabeça como se elas estivessem malucas. —— Enlouqueceu foi, Dora? Cês duas querem acabar no meio da confusão, é?
Rita, com aquele ar de quem sabe bem o que quer, deu um passo à frente e declarou firme. —— A gente vai junto, sim.
Professor, cruzando os braços, olhou para Pedro, esperando que ele dissesse algo. —— Vai deixar, Bala?
Pedro olhou de volta para Rita. A menina o encarava com um brilho firme no olhar e um leve sorriso que o fazia sentir mais forte. Sem pensar duas vezes, Pedro assentiu.
—— Deixa elas irem.
Professor bufou, revirando os olhos.
—— Já virou capacho, é, Bala? —— murmurou com um tom de desdém, mas deu de ombros e seguiu para o outro lado do trapiche, Dora ao seu lado, enquanto ela ria baixinho.
Rita e Pedro ficaram se olhando, um silêncio carregado de cumplicidade.
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﹙✓﹚ corações de areia, pedro bala.
Fiksi Penggemar⏳| Ritinha é uma jovem que, abandonada pela família, aprendeu a viver por conta própria. Marcada pela dureza da vida na rua, ela é acolhida pelos Capitães da Areia, um grupo de meninos de rua liderados pelo destemido Pedro Bala. Lá, ela descobre a s...