QUERIDO AMIGO DE PAPEL,
Acabo de chegar em casa do hospital, mas não me sinto nada bem.
Desde que eu era apenas um moleque de oito anos de idade, que perdera meu primeiro cachorro, Guardião, para um enxame de vespas letais no galho de um sicômoro centenário, minha mãe me ensinara duas lições: a) que este era o ciclo da vida dos mortais, "do pó viemos e ao pó somos fadados a retornar", e b) que acidentes acontecem o tempo todo, e que somos incapazes de prevê-los, pois, do contrário, seres vivos não morreriam ao cair de um cavalo assustado, ao desmaiar por inalação de gás e se afogar posteriormente em banheiras caseiras, ou ao ser picados até a morte por insetos venenosos.
Quando eu me tornei um homem feito, percebi que ela pensava em meu pai ao proferir tais palavras. Acho que ela teria gostado muito de ser abençoada com o dom de evitar mortes. Assim, não teria recebido uma caixa de sapatos com os pertences de meu pai, que perecera na Guerra Anglo-Americana lutando pela nossa amada Grã-Bretanha, enquanto minha mãe e eu passávamos meses sem uma resposta às nossas cartas. Percebi também que ela tentava me fazer não sentir tanta culpa pela morte do Guardião, ainda que este pensamento de remorso não houvesse cruzado minha mente ignorante como é tal de uma criança.
- Foi um acidente, Barney. - Era o que ela sempre dizia quando eu tocava no assunto. - Não tinha como você saber que o graveto iria parar perto daquele ninho de vespas, tinha? Você não é Deus, querido. Ele é quem rege os planos para Seus filhos. Ele é quem sabe de tudo.
No entanto, não compartilhávamos do mesmo sentimento sobre a morte.
Nós costumávamos morar em um distrito abastado, mas depois da morte do meu pai, fomos morar em uma modesta cabana de campo no interior, perto de Londres. Minha mãe caminhava até a cidade todos os dias para trabalhar. Quando ela voltava, seus pés estavam cheios de calos. Lembro-me de vê-la sentada à mesa da cozinha, exausta, tirando os sapatos e massageando os pés doloridos com as mãos em carne viva por tanto esfregar. Ela nunca reclamava, mas eu podia ver o cansaço em seus olhos, um brilho desbotado que raramente desaparecia. Aquela cabana era álgida e úmida no inverno, mas ela deu seu melhor para que parecesse um lar.
Minha mãe era uma mulher entregue à própria sorte, que necessitara de trabalhar como criada em dezenas de casas por dia para sustentar o filho magro e pálido, que recentemente havia começado a navegar com o Capitão-de-todos-estes-homens-da-morte e sua irmã gêmea, a Praga Branca. Uma tosse seca irrompeu em um dia resplandecente de verão, um filete de sangue escorreu pelo canto dos meus lábios púrpuros, e a antiga esposa do Major Henry Greene despencara de joelhos aos prantos por ser obrigada a suportar pela segunda vez a morte a presença da morte naquele lugar.
Foi uma sorte que eu tivesse sobrevivido à tuberculose. Foi uma sorte que minha mãe tivesse conseguido bastante dinheiro para o meu tratamento à base de cicuta e terebintina, às custas de seus empregadores repugnantes e suas mãos bobas. Lágrimas antes de dormir a fizeram forte da noite para o dia. Minha mãe lutou por seu filho mais do que meu pai alguma vez lutara pelo seu país. Nunca contei para ela que, um dia depois, retornei ao velho sicômoro onde encontrei o corpo em decomposição de Guardião, o pastor inglês mais leal no mundo inteiro.
As moscas já o rodeavam, vermes brancos comiam sua carne morta. Algumas de suas assassinas também faziam um banquete. Sua pele rósea, coberta por uma camada grossa de pelo cinza e negro, estava inchada. Minha mãe nunca saberia que Guardião podia estar com os dias contados pela tuberculose, e que eu fora provavelmente contaminado quando perturbei seu corpo sem vida com o mesmo graveto que serviu de guia para seus carrascos. O graveto atravessou uma cavidade ocular; entre duas costelas à mostra na pele rasgada de sua lateral; em volta de um buraco em seu peito oco. Todos estes experimentos pavorosos somente porque eu queria saber como um cadáver funcionava após morrer. Eu amava Guardião, mas acreditava que sua partida serviria para um propósito maior.
Por isso, não compartilhávamos do mesmo sentimento sobre a morte. Minha mãe nunca entenderia que havia mais a explorar quando um ser vivo partia dessa vida. O fim da linha não significava uma barreira, mas algo que podia ser estendido. Eu tinha oito anos, e meu primeiro contato de verdade com a ceifadora de vidas seria com a carcaça de um cachorro que eu amava, embora tivesse sentido mais prazer em conhecer sua anatomia. O segundo contato, com a minha quase morte, quando a Praga Branca aguardara dias e semanas e meses na soleira de meu quarto, à espera do meu último suspiro. O terceiro... este foi o que me marcou com úlceras profundas.
Minha mãe ficara tão transtornada com a minha doença, que seu objetivo tornou-se a minha cura. Mas ela esqueceu-se de si mesma. E, quando me tornei um homem feito aos quinze anos, a sra. Greene bateu as botas após uma longa batalha em cima de uma cama fria. A enterrei no quintal de nossa casa, ao lado de onde a caixa de sapatos de meu pai repousava a sete palmos do chão. Foi uma época difícil. Aos quinze anos de idade, compartilhei finalmente do mesmo sentimento de minha mãe. Dali para a frente eu evitaria a morte das outras pessoas a todo custo. Esta foi uma promessa que fiz na frente do túmulo dos meus pais, que nenhum filho sofreria as mesmas perdas que eu sofri.
Mas isto é um capítulo de 1818. Agora, quase dez horas da noite, acabo de chegar em casa do hospital com um fardo pesando em minha mente. Esta noite, eu perdi um paciente na mesa de cirurgia. Esta noite, eu falhei com a minha promessa.
Parece que cada momento foi desnudado, revelando um vazio do qual não consigo escapar. Sento-me aqui, curvado sobre minha escrivaninha, ainda com as roupas manchadas de sangue que usei durante a cirurgia. Não consigo me obrigar a lavar minhas mãos, embora as tenha esfregado até ficarem em carne viva; o sangue de Carmichael Blunt permanece, como se a própria memória tivesse penetrado em minha pele. O cheiro acobreado permanece também, contaminando o ar ao redor, um lembrete do meu próprio fracasso. Não sei se consigo dormir depois disso.
Barnaby Greene.
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O Milagre Profano do Doutor
Short Story"A vida é delicada demais para que qualquer intervenção do homem a prolongue quando a natureza já a concluiu." Londres, 1849. Barnaby Greene, profissional da medicina especializado em cirurgias, acaba de enfrentar o pior pesadelo de sua carreira: pe...