QUERIDO AMIGO DE PAPEL,
Aqui se encontra os desdobramentos do meu crime hediondo. E confesso que mais um foi acrescentado à lista. Desta vez, no entanto, não quebrei minha promessa; ao contrário, estou determinado a cumpri-la, buscando minha redenção pelos pecados cometidos contra o pobre Carmichael Blunt. Apesar disto, às vezes me pego pensando que jamais poderei lavar-me de toda a mácula que suja minha alma, que o sofrimento perdurará até que esteja satisfeito. São pecados demais para apenas a fé de livramento de um padre absolver. Mas é possível que eu consiga viver com isto. Se Cathy estiver ao meu lado, bem, me sentirei melhor.
Aguardei por mais uma visita da noite a Londres para finalizar meus planos em relação a Edward Poe. Naquela mesma manhã em que fui ao seu alojamento, após desacordá-lo, comprei um cavalo e uma carroça de um agricultor que morava no campo. Seu temperamento era ruim, e ele recusou-se a fazer este favor para mim. Mas sua atitude ferrenha logo mudou à luz de umas notas de cinquenta libras que eu cedera de meu cofre. Desempregado, eu precisava poupar meu dinheiro para sobreviver até encontrar outro trabalho, talvez fora de Londres quando Cathy se reunisse comigo. Contudo, abrir mão de minha fortuna acumulada ao longo dos anos não seria absolutamente nada se comparado ao valioso prêmio que eu ganharia em muito breve.
Então, embaixo da chuva que decidira afinar outra vez, me locomovi de volta ao centro de Londres, onde estacionei o cavalo e a carroça em uma viela próxima ao meu alojamento na Harley Street. Paguei a um garoto maltrapilho para vigiá-la. Pelo menos, até a noite. Ele prontificou-se somente com a ideia de encher seu estômago faminto com o dinheiro que eu dei.
E, quando a noite caiu, cavalguei até a Great Marlborough Street. As ruas estavam felizmente vazias; a população devia estar abrigada em suas moradias, abrigadas da neve fresca que pedira à chuva por um turno. Afinal, a imagem evocada do inverno era a de gelo, neve, e chocolate quente em frente à lareira. Compreendi também que as pessoas estavam esperando pela meia-noite, pela véspera de Natal, quando seu Salvador faria uma passagem em sua estrela d'alva para lhe trazer boas novas. Não sei se elas a vislumbrariam com o céu tomado de nuvens cinzentas. Em cada porta pela qual eu passava, havia uma guirlanda verde e vermelha pendurada, com sinos que tiniam ao leve toque do vento.
O vento soprava os flocos de neve sobre meu rosto, mas eu o protegera com um lenço de pano. Havia alguns pedestres nas ruas, poucos, mas nem mesmo uma multidão teria reconhecido o homem que salvara seus familiares da morte certa. O lenço de pano ajudava; a escuridão, apesar das lâmpadas a gás, também. Levou cerca de vinte minutos, a um galope ritmado, para eu parar em frente ao número 36. Foi ali, no antigo alojamento de Charles Darwin, que o famoso Dr. Edward Poe despediu-se de sua vida longa.
Quando entrei silenciosamente na sala de estar, ele ainda estava em uma posição diferente, em um local diferente. Ele não estava mais de bruços sobre o tapete da sala de estar; estava caído sentado em um canto da cozinha, com a mão enfiada em sua boca. Eu notara uma mancha amarelada no tapete, mas somente agora entendia que ele havia acordado em algum ponto e tentado induzir o vômito para se livrar dos efeitos do narcótico. Não obtivera sucesso. Quando toquei seu pescoço, abaixo do maxilar, não senti pulsação. Edward Poe estava morto. Sua pele já começava a ficar fria. Acho que eu tinha exagerado na dose do narcótico. Como eu saberia que o velho fazia uso de remédios potentes? Talvez fosse um viciado, quem sabe.
De qualquer forma, eu o arrastei até a sala de estar e larguei seu corpo pesado sobre o tapete vomitado. Pousei meu ouvido sobre seu peito. Ouvi seu coração bater fracamente. Ele havia acabado de bater as botas. Eu não contava com isto, mas estava contente, vibrante, que a primeira parte do meu plano dera certo. Pelo visto, alguma divindade andava jogando os dados direitinho por mim. O que era bom, pois eu necessitaria de mais benção divina nas próximas horas.
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O Milagre Profano do Doutor
Truyện Ngắn"A vida é delicada demais para que qualquer intervenção do homem a prolongue quando a natureza já a concluiu." Londres, 1849. Barnaby Greene, profissional da medicina especializado em cirurgias, acaba de enfrentar o pior pesadelo de sua carreira: pe...