21 de dezembro de 1849 - Sexta-feira, 00h35

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QUERIDO AMIGO DE PAPEL,

Pode ser que eu tenha sido conduzido pelas mãos mais macias do continente para uma dança, com a doce melodia do amor tocando em meus ouvidos. Devo estar imaginando coisas, ou imaginando que estou sentindo coisas, mas é possível que o Cupido tenha flechado meu medroso coração com brutalidade.

Foi uma noite difícil, a última, particularmente depois que a garrafa de uísque esvaziou-se, e meus olhos ainda não pesavam de uma amálgama de sono e embriaguez. Embora meu intuito houvesse sido o de deitar-me nos lençóis de grama do mundo onírico, tive medo de encarar novamente o rosto fúnebre de Carmichael Blunt. Um dia teria que fazê-lo no além, mas agora, enquanto eu ainda respirasse o hálito da vida que Deus havia soprado em minha boca, eu enfrentaria o inferno na terra, e isto, por ora, bastava para mim.

Estes pensamentos melancólicos me perseguiram a noite toda. Me causavam mais arrepios do que a neve fresca. O inverno finalmente havia chegado em Londres, e as ruas já estavam cobertas de camadas grossas e fofas de uma neve enlameada. As rodas das carruagens e seus cavalos criavam suas respectivas marcas no chão; homens e mulheres, pálidos e encolhidos sob roupas que protegiam contra uma parcela de frio, andavam lentamente, com os rostos ruborizados, quase se abraçando para unificar o calor de seus corpos. Muitos, como eu, também mantinham as mãos enfiadas nos bolsos para evitar que o vento gélido as castigasse.

Eu estava lá, em minha própria carruagem, assistindo à bruma fria se formar na frente de meu rosto, fechando a cortina para impedir o vento cortante. O cocheiro assobiava uma canção familiar enquanto chicoteava os sofridos animais atrelados à carruagem. Os cavalos relinchavam em desaprovação, mas continuavam a me levar para o meu destino. Havíamos partido de meu alojamento na Harley Street quando o sol começava a se pôr; todavia, em alguns segundos, Londres estava mergulhada na penumbra de uma noite levemente iluminada pelas lâmpadas a gás, que estavam recentemente virando uma tendência desde aquela demonstração científica em Pall Mall, em 1807, quando eu não havia nem nascido. As lâmpadas tremeluziam fracamente nas esquinas, como se até a cidade estivesse cansada, sucumbindo ao peso do inverno.

Rumávamos na direção do Rio Tâmisa, mais precisamente para as imediações de Southwark. A noite parecia mais sombria do que o habitual em Southwark, talvez porque era uma área abandonada pelos poderosos líderes de nossa nação. A Idade Média jamais terminara para as pessoas de Southwark. Eles ainda não conheciam nada além de sua Era das Trevas. O céu tomado de nuvens refletia um tom acinzentado sobre as ruas à medida que nos afastávamos do centro de Londres.

Londres, Londres... 

Minha Londres é uma mistura estranha de imponência e miséria, uma colcha de retalhos onde o esplendor e a degradação se entrelaçam, tão próximos que parecem querer sufocar um ao outro. Em cada esquina do centro, onde os grandes edifícios de tijolos vermelhos e fachadas vitorianas se elevam sobre as ruas, sinto o peso da opulência e da velha tradição. A simetria meticulosa, as janelas bem alinhadas, e as esculturas enfeitadas em ferro fundido... É como se a cidade quisesse esconder suas cicatrizes, mascarando as sombras que rastejam em seus becos apertados e escuros.

Mas é quando nos aproximamos de Southwark, quando estamos à beira do Tâmisa, que sinto seu verdadeiro cheiro. Não consigo ignorar o que se esconde por trás dessas fachadas: ruas estreitas, sujas, o cheiro das vielas e das moradias lotadas onde a pobreza se enrosca. É nessas ruas, onde a neve derrete e se mistura à lama das carruagens e aos passos apressados, que a verdadeira Londres se revela. Cada vez que contemplo essa arquitetura imponente ao meu redor, penso que é um esforço vão de manter a ilusão de ordem, como se estas paredes e janelas alinhadas fossem bastar para sufocar o grito daqueles que a cidade insiste em esquecer.

Afastei a cortina e olhei pela janela para o famoso Rio Tâmisa, e suas águas sujas que permaneceriam congeladas até a primavera. Mesmo isto não impedia que eu imediatamente tampasse meu nariz por causa de seu fedor insuportável. A carruagem empenou para um lado. Os cavalos estavam incomodados com o odor também, mas o cocheiro tomou as rédeas e nos colocou em movimento mais uma vez. Chegamos a Southwark. Desci da carruagem, enfiando meu pé em uma poça de lama e dejetos. Ainda não me arrependia de minha decisão. Nada me faria mudar. Afinal, lá estava o lugar que eu procurava: o Lobo Sem Presas.

O Milagre Profano do DoutorOnde histórias criam vida. Descubra agora