23 de dezembro de 1849 - Domingo, 14h31

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QUERIDO AMIGO DE PAPEL,

Sinto em informar que hoje cometi um crime hediondo.

Você também concordaria comigo que é uma suprema hipocrisia que eu tenha feito uma promessa de salvar vidas a qualquer custo, quando poucas horas atrás eu impedi a linha da vida das mãos de alguém de prosseguir seu caminho ao um futuro longínquo determinado por Deus. Mas garanto a você, querido amigo de papel, que esta pessoa mereceu encontrar o Criador antes do arrebatamento descrito no Livro do Apocalipse.

Entre a processual destruição do meu fígado Lobo Sem Presas ontem à noite e esta manhã encharcada por uma sensação incessante e dolorosa de desalento que me abraçou desde que despertei de mais sonhos irrequietos e angustiantes, sinto o peso das últimas horas corroendo minha essência. Naquele sonho perturbador, vi Cathy reunir-se o fantasma de Carmichael Blunt, ambos pálidos e intensamente ameaçadores. Suas presenças geladas pareciam envolver o quarto em sombras e presságios sombrios. O pesadelo parecia real demais. Passei a ponderar sobre a linha tênue que separa o desejo de seguir Cathy para além deste mundo e a necessidade de honrar os anos de vida que ainda me restam.

Foi nesse turbilhão de pensamentos que percebi algo com clareza: o que eu realmente queria era viver ao lado de minha amada Cathy, sentir seu toque no presente, ter nossas vidas entrelaçadas enquanto ainda existimos em nossos corpos físicos. A perspectiva de permanecer com ela apenas na morte se desfez, como uma névoa dissipando ao primeiro raio de sol, e a convicção de que ela deveria estar comigo, aqui e agora, enraizou-se no mais profundo do meu ser. Do contrário, por que ela teria atravessado o véu da morte e escolhido a mim como seu salvador? Por que teria aparecido para mim como um fantasma, senão para pedir por sua vida de volta? E, quem sabe, para amá-la como eu já amo tanto? Meu coração pareceu recuperar-se depois de tanto tempo perdendo seu descompasso. As batidas tornaram a lembrar-me de cavalos trotando em uma belíssima clareira banhada pela luz do dia.

Refleti sobre o significado desta atitude inesperada do meu órgão. Ele respondeu-me que tratava-se de esperança. Minha amada Cathy poderia estar morta, mas nem Deus em todo Seu esplendor contava com a astúcia que Ele próprio havia me concebido. "A esperança é a última que morre", pensei. "A última que fecha a cortina quando o espetáculo acaba." Porém, o espetáculo para mim havia acabado de começar.

Albert me aguardava na frente de meu alojamento na Harley Street. Após um aceno breve, O instruí a seguir para a Biblioteca de Londres, e as rodas da carruagem quebraram o gelo formado nas ruas pelo frio noturno. De repente, uma chuva fina caía sobre a cidade, tornando o percurso ainda mais cinzento, e o balanço das ruas molhadas e quase intransponíveis pela neve enlameada ecoava no interior da carruagem, quebrando a quietude do percurso. No entanto, fiz um agradecimento. O silêncio me faria pensar demais. Observei os pedestres enquanto eles caminhavam pelas calçadas, empunhando guarda-chuvas a caminho de suas obrigações. A vida de nenhum deles, nenhuma preocupação ou responsabilidade que os mantivesse acordados à noite mordendo o travesseiro para abafar um choro incontido, poderia ser comparada ao desastre recorrente que era a minha.

Em alguns minutos, minha carruagem estacionou na frente da biblioteca. Desci e pedi a Albert que esperasse. Prometi que seria breve. Fui diretamente para a ala dos arquivos médicos. Apesar do meu recente descargo, ainda possuía acesso irrestrito aos registros da biblioteca. Minha demissão, afortunadamente, não havia sido amplamente divulgada, o que me permitiu usar minhas credenciais sem levantar suspeitas. Respirei fundo e caminhei em direção aos arquivos da medicina, sentindo a leve ansiedade de quem teme ser interrompido a qualquer momento.

Nos corredores silenciosos, revesti minhas mãos com luvas especiais e abri cuidadosamente os arquivos mais antigos, buscando qualquer menção que me ajudasse. Passei por edições desgastadas de publicações, de anotações sobre tratamentos e avanços científicos até relatos de cirurgias pioneiras. A atmosfera do lugar exalava conhecimento e uma sensação de reverência ao que ali estava registrado. As prateleiras altas ao meu redor, repletas de volumes encadernados em couro, pareciam observar minha pesquisa em completo silêncio.

O Milagre Profano do DoutorOnde histórias criam vida. Descubra agora