QUERIDO AMIGO DE PAPEL,
Ando tendo sonhos delirantes. Está um frio de bater os dentes ultimamente, a aproximação do inverno estendeu sua capa congelante sobre a Londres da Rainha Vitória desde o início da semana, mas, mesmo assim, eu acordo com meu pijama encharcado de suor e uma mão trêmula sobre a boca. Não controlo mais meus gritos. Meu peito dói por segurá-los. O som abafado pela minha mão faz um percurso por dentro de minha cabeça até meus ouvidos, e eu consigo me ouvir dizendo aquela frase maldita aos pais de Carmichael Blunt: "Eu prometo a vocês, meus amigos, que ele vai ficar bem".
Eu sinto muitíssimo por ter desaparecido esses dois dias. Encontro-me incapaz de colocar em palavras o que me atormenta, mas é como se a própria sombra da morte tivesse feito sua residência em minha mente. Sou assombrado, noite após noite, pela imagem do meu paciente escorregando para a morte diante dos meus olhos. Esta é uma visão que não me concede paz. Revivo a tribulação incessantemente, preso em um ciclo infernal, retornando interminavelmente àquele momento terrível na sala de operação. Não consigo afastar o sentimento de que poderia ter feito mais, de que deveria ter feito mais.
E as noites são as piores.
Fico preso em sonhos que parecem não ter fim. Lá estou eu, novamente, diante da mesa de operações, mas desta vez, não é apenas o corpo sem vida à minha frente que me condena; é cada olhar acusador na sala, cada colega e enfermeira que me lança um olhar de fúria, com aquele tipo de desdém amargo que apenas o fracasso pode gerar. Quando acordo e acalmo-me, lembro-me de que a equipe médica foi mais solidária; minha mente culpada é que manipula a realidade. Mas quando estou preso no mesmo pesadelo, sinto o sangue espesso e escuro do filho do prefeito cobrindo minhas mãos, tão pesado e implacável que parece que jamais se limpará. Deixo o bisturi cair, e o som metálico agudo ao bater no chão ecoa por muito mais tempo do que qualquer som deveria.
É quando desperto, com o meu coração acelerado como um cavalo de corrida.
Às vezes, nos sonhos, o pequeno Carmichael Blunt abre seus olhos com suas superfícies leitosas e os volta para mim. Me sinto destruído quando lembro que o tratava desde criança. A primeira vez que o filho do prefeito viera ao meu consultório fora por causa de um corte no joelho. Carmichael pegara sete pontos. Ao longo dos anos, tornara-se meu paciente preferido. Eu nunca me casara, nunca gerara filhos, mas o via como meu. Um dia, quando Carmichael aparecera no consultório com uma dor lombar, descobri um tumor maligno crescendo em sua coluna. O tumor já havia se espalhado por grande parte de suas costas, mas eu tinha uma promessa a cumprir. Marcamos a cirurgia e retiramos o tumor com sucesso. Antes de fecharmos suas costas, percebemos que o maldito se espalhara para o intestino grosso.
Minhas esperanças começaram a morrer. Os médicos quiseram me impedir, mas eu decidi salvar Carmichael Blunt, mesmo que isso acabasse lhe custando a vida. Eu tinha apenas uma chance. Foi uma perda irreparável. Ele morreu por causa da minha promessa. Eu quebrei minha promessa por causa dele.
Agora me pego refletindo sobre como todos esses anos foram uma busca incansável de domínio sobre a vida e a morte. Esta busca foi acesa naquele dia sob o velho sicômoro, atiçada pelas sombras persistentes do meu pai e da minha mãe, e alimentada pelo meu quase fatal encontro com a Peste Branca. E ainda assim, por mais que eu tenha estudado, me deparo com a dura verdade de que nenhuma quantidade de habilidade, nenhuma medida de determinação, pode dobrar completamente o destino à minha vontade. Também aprendi da maneira mais difícil que, como médico, nunca devo prometer a ninguém o melhor para meus pacientes. Percebi que poderia estar me sentindo culpado devido ao otimismo que dei ao Prefeito Blunt e sua esposa.
É uma percepção amarga, que irrita todos os meus instintos. Testemunhei a fragilidade da vida inúmeras vezes, mas não consigo me resignar a isso. Não consigo aceitar que, depois de anos aprendendo, dissecando, examinando os limites entre carne e espírito, ainda sou incapaz de alterar o que parece inevitável. O que mais me assombra é o vazio que se instalou na boca do meu estômago, uma dor oca onde antes residia a esperança. Eu acreditava que meu trabalho, minha promessa, poderia de alguma forma me conceder imunidade a esse desespero que tudo consome, contudo, parece que a morte finalmente reivindicou não apenas meu paciente, o desaventurado Carmichael Blunt de treze anos, mas o próprio coração da minha determinação.
Desde aquela noite da cirurgia, a sensação de fracasso paira sobre mim como um fantasma. Ela me aperta pelo pescoço, como se uma mão invisível tivesse se enrolado, implacável, ao redor de minha garganta. Carrego esse peso constantemente, uma pressão sufocante que parece apenas crescer a cada dia. Não sei por quanto tempo mais conseguirei suportar tal tormento. A culpa tornou-se uma maré implacável, que ameaça me consumir por completo, e temo que logo me tomará o pouco de paz que ainda me resta.
Assim, uma vez que a culpa já está fazendo seu trabalho. e eu não consigo dormir sem acordar de pesadelos terríveis, meu diário e minha pena não são os únicos objetos em minha escrivaninha no momento. Encontrei uma velha garrafa de uísque em uma das gavetas da minha cozinha. A garrafa está pela metade agora. Espero beber tudo até a noite acabar. Espero que me ajude a dormir, pois não sou capaz de fazê-lo sozinho.
Barnaby.
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O Milagre Profano do Doutor
Short Story"A vida é delicada demais para que qualquer intervenção do homem a prolongue quando a natureza já a concluiu." Londres, 1849. Barnaby Greene, profissional da medicina especializado em cirurgias, acaba de enfrentar o pior pesadelo de sua carreira: pe...