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Eliza s/s. Tenho 17 anos, quase 18, e uma vida que, por fora, pode parecer simples e até exemplar. Filha de pastores, criada no evangelho, uma moça que "vive para Deus" - é assim que todos dizem. Mas, por dentro, essa vida tem seus próprios nós, e cada um deles se aperta um pouco mais a cada dia.

Quando olho para mim mesma no espelho, vejo uma garota de pele parda, cabelos longos e ondulados, olhos castanhos escuros, e um corpo coberto por roupas que mal escolhi. Sempre tive essa vontade de me vestir diferente, usar algo que não me fizesse sentir como se estivesse aprisionada. Mas é difícil. Meus pais não enxergam o que eu quero - eles só enxergam o que acham que eu devo ser.

Hoje é noite de culto. Estou sentada no banco da igreja, cercada por fiéis que cantam e oram fervorosamente. Os hinos ecoam pelo salão, e a voz do meu pai ressoa forte, poderosa no microfone. Ele sempre foi um homem de presença. Quando eu era pequena, olhava para ele com orgulho e até uma certa admiração. Achava bonito tudo isso - o jeito que ele pregava, o brilho no olhar dos fiéis, a fé que parecia contagiar cada pessoa ali.

Naquela época, eu era apenas uma criança, e esse ambiente me encantava. A inocência me fazia ver tudo de uma forma doce e ingênua. Eu acreditava que estava cercada por algo mágico e seguro. Eu gostava de estar ali, de fazer parte disso, sem questionar nada.

Mas agora, é como se um véu tivesse sido tirado dos meus olhos. As doutrinas, os limites, as expectativas... tudo isso pesa em mim. Sinto como se tivesse vivido toda minha adolescência presa em uma caixa, enquanto lá fora as outras garotas da minha idade vivem coisas que eu nem consigo experimentar. Eu queria ser livre como elas, usar o que eu quisesse, ir aonde eu quisesse, sem carregar o peso de ser "a filha dos pastores".

Minha mente se perde nesses pensamentos enquanto o culto continua. Finjo prestar atenção, mas, na verdade, minha cabeça está em outro lugar. Eu só queria, por uma vez, poder ser como todo mundo.

Meu pai sobe ao púlpito com seu olhar firme, aguardando que o salão de repente silencie, como sempre acontece quando ele levanta a mão. E então ele me chama. O que sinto é uma mistura de desconforto e obrigação, mas eu me levanto, como sempre fiz, sem hesitar.

Cantar na igreja é algo que faço desde pequena. Em algum momento eu gostava - ou talvez eu gostasse da ideia de que meus pais se orgulhavam disso. Mas hoje, enquanto caminho até a frente e sinto os olhares de todos sobre mim, há um peso em meu peito. Parece que meu corpo está resistindo, como se soubesse que aquele lugar não é onde ele quer estar.

Eu me posiciono ao lado do microfone, ajusto-o para a minha altura, e olho para o salão lotado. Vejo as pessoas em oração, algumas até emocionadas, mas para mim, a emoção parece uma memória distante. Agora, cantar é apenas parte do que esperam de mim.

Escolho um louvor que todos conhecem. Não é dos meus preferidos, mas é o tipo que agrada a congregação - um hino lento, melancólico, que fala de redenção, entrega e obediência. À medida que canto, minha voz ecoa no salão, e eu percebo os olhares das pessoas voltados para mim com expectativa e reverência.

Sinto o calor das luzes sobre mim, o peso dos olhares me deixando mais nervosa, mas tento ignorar. Forço um sorriso, mas a verdade é que cada palavra que sai da minha boca parece menos minha. As letras falam de entrega e fé, de abrir mão do mundo, mas há uma parte de mim que anseia exatamente pelo oposto. Fico me perguntando se eles conseguem ver o quanto estou desconfortável, o quanto há em mim que não se encaixa ali.

Cantar deveria ser algo libertador, mas nesse momento, sinto como se cada nota me aprisionasse ainda mais. Olho para meus pais sentados na primeira fileira. Minha mãe Rute sorri para mim, orgulhosa, com os olhos brilhando de devoção. Já meu pai, João, está sério, olhando-me com o peso de alguém que confia que vou fazer a coisa certa, a "vontade de Deus".

𝐎 𝐏𝐞𝐜𝐚𝐝𝐨 𝐭𝐞𝐦 𝐎𝐥𝐡𝐨𝐬 𝐀𝐳𝐮𝐢𝐬 | G!POnde histórias criam vida. Descubra agora