Prólogo

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Outubro de 1807

San Sebastián, Espanha - Enrique

Ela se aproximou no abraço e suspirou. A respiração pesada contendo o choro, como se todo o ar da Espanha não lhe fosse suficiente. Sua cabeça baixa - até então em silêncio pressionada contra meu peito - soltou um gemido abafado e levantou-se, fazendo com que aqueles olhos castanhos me encarassem por um segundo, me prendendo como uma corrente invisível a um prisioneiro.

- Eu te amo - sussurrou meio gaguejando, com voz fraca e temerosa, uma voz que hesitava em pronunciar as palavras como se elas pudessem contaminar seu sangue. Porque talvez pudessem. Os mesmos olhos que me prendiam brilhavam com intensidade por trás das lágrimas prestes a escorrer pelo rosto e suplicavam por algo que não pude compreender logo de cara. Então ela repetiu: - Eu... Eu te amo!

Soltei os braços que a envolviam e apoiei minhas mãos em seus ombros, encarando-a de volta como se precisasse obter a confirmação daquilo. Não precisava, é claro. Estava visível desde a primeira vez que dissera. Desde antes até.

- Tem... Tem certeza disso? - hesitei - De que quer isso, digo. - Seria uma situação muito, mas muito complicada se a resposta fosse um "sim". O mundo nos colocou em partes opostas da vida; lados de uma moeda que se completam, mas nunca podem ficar juntos. Como sol e lua.

Como rico e pobre. Como a opressão e a liberdade.

Ela confirmou com a cabeça ao mesmo tempo em que sussurrava um: - Tenho.

- Sabe o que isso significa, não?

Os olhos dela cerraram, o rosto abaixou e as gotas salgadas escorreram de novo. Sequei os traços deixados por elas com o polegar calejado pelo tempo gasto no trabalho pesado e levantei sua face para que encarasse a minha de novo.

- Não tenho como mentir para mim mesma. Não me julgue mal, gostaria que pudesse ser diferente. - Ela deu um passo para trás. - Saiba que não espero nenhuma atitude sua. Nem que vá atrás de mim, nem que me escreva - ela engoliu em seco -, nem que jamais me esqueça. Obrigado por me fazer ver tudo que eu não via.

Com um sorriso triste girou nos calcanhares e saiu em disparada. Segurava um pedaço do vestido violeta com uma mão, mas mesmo assim este balançava conforme as passadas aconteciam. Não a segui. Não poderia. Eu já conhecia aquela história, ela mesma havia me contado, havia me alertado sobre as consequências. Só não esperava que se entregasse assim, tão fácil.

"Tão fácil...", pensei.

Algo naquela cena me fez chorar em silêncio. Talvez as casas banhadas pela luz alaranjada do pôr do sol ou a chuva fina que caía lenta naquela tarde de outono, como uma cortina de água pairando por todo o ambiente, separando o sonhador do sonho. Talvez fosse por ver a felicidade que percorria a cidade do interior da Espanha enquanto uma tragédia particular acontecia entre ela, como se não fosse nada de mais. E a vida continuaria... Sempre continuava.

Talvez até fosse a revelação... Mas acho que no fundo o que me fez entristecer foi saber que o feitiço ou fosse lá o que era aquilo agora surtiria efeito e aquela bela e - apesar de todos seus defeitos - adorável garota não seria mais a mesma. E ainda que eu a amasse também não havia nada que pudesse fazer.

Era uma história fadada ao desastre logo do começo. Para mim, aquele ano de 1807 acabou ali. Achei que era o fim.


Mas muita coisa ainda havia de acontecer.

- Yvone

"Amaldiçoadas sejam essas lágrimas!", pensei ao tropeçar numa lajota solta da rua pela visão embaçada. Parei de correr suspirando como uma condenada e me engasgando vez ou outra com a própria saliva. Apoiei a mão numa parede de esquina e respirei fundo. Tentei pelo menos. Sentia o rosto quente e um pouco suado, os cabelos desgrenhados onde antes era a trança bem feita ensinada por minha tia. Olhei para além da rua, para cem metros adiante onde a pedra se tornava areia e a areia se tornava mar; até o horizonte onde o sol se punha alaranjado como uma brasa.

Logo as estrelas invadiriam a abóboda celeste e o que antes eu encarava com beleza agora se tornará minha fúria, pois elas serão o motivo da minha desgraça.

"Amaldiçoadas sejam essas estrelas!", pensei também com os olhos ainda marejados. "Amaldiçoado seja tudo e todos que em meu caminho se colocaram para que isso acontecesse. Maldita seja aquela velha bruxa e maldita seja Vera com seu charme ou Léon com o dele." Caí de joelhos no chão e enfiei meu rosto entre as mãos, chorando como nunca.

"Malditos sejam meus pais e sua arrogância e malditas minhas tias com seus conselhos bestas!"

Minha raiva crescia, meu corpo esquentava e minha cabeça parecia querer explodir. Não poderia sentir isso sempre sem que de fato explodisse de uma vez em ataques nervosos. Precisava me controlar.

Tirei as mãos do rosto e abracei minha própria barriga apertada pelo espartilho. Queria tirá-lo ali e respirar profundamente, puxar ar e chorar até não poder mais. "Não quero que isso aconteça comigo!"

Parecia que o efeito já começara.

"Amaldiçoado seja, Enrique. Amaldiçoado seja você e seu jeito de ser, seu rosto e seu sorriso, seu toque, seu olhar... Amaldiçoados sejam TODOS!"

Mas eu estava errada. Oh, Deus, como estava errada! Era claro para qualquer um que passasse por ali e me visse assim, para qualquer um que soubesse da história, para qualquer um que me conhecesse antes daquilo...

A única amaldiçoada ali era eu. Mas o que eu poderia fazer, afinal, senão lamentar? O que poderia fazer a essa altura? Creio que quem disse não adiantar chorar sobre o leite derramado nunca precisou esvaziar a alma de um sentimento que pesasse. Nunca precisara chorar.

Eu precisava. Nada mais naquele momento me satisfaria.


O que você faria se te proibissem de amar?

Floresta próxima à Bayonne, França - Zandra

Estava acontecendo. Sempre sentia a atmosfera tremer e mudar, como se o sol por um segundo se apagasse e depois estivesse de volta com mais força.

Sorri.

"Finalmente", pensei, "Finalmente poderei sair daqui."

Minha vida como prisioneira havia enfim acabado. O preço pago fora o combinado e nem Deus nem o Diabo me segurariam nessa floresta amaldiçoada mais. Levantei a mão - ainda com aquele sorriso amplo - até a frente de meu rosto e estalei os dedos. Ah, aquela sensação maravilhosa de cem mil espíritos tocando sua essência, correndo por seu ser e atravessando seu corpo da coluna até a ponta dos dedos.

Tudo isso rápido como um piscar de olhos.

E então a chama surgiu. Um pequeno ponto de luz tremeluzente, azulado, que subia pelo comprimento de uma unha a partir da ponta do meu dedão. Larguei a cesta que carregava e deixei que espalhasse pelo chão terroso todo e qualquer fruto que passara a tarde recolhendo.

- Não precisarei mais disso - disse a mim mesma. Soltei do pescoço a capa negra que arrastava pelo chão e deixei-a por ali também. - Obrigada Yvone.

Meu sorriso se tornou uma gargalhada que ecoou pelas árvores, fechou o tempo e aumentou a ventania. Uma gargalhada que fez animais correrem para suas tocas o mais rápido que conseguiram, pois sabiam o que estava acontecendo.

Num movimento súbito abri os braços para os lados e deles saiu um jato de fogo que queimou um raio de cem metros de plantas. Me senti fraca, mas apesar de tudo, feliz. A floresta ardia agora, iluminando minha noite perfeita: a noite em que me tornara livre. Livre, mais uma vez. Setenta anos de solidão e fraqueza não me derrubaram, então nada me derrubaria agora. Nenhum ser grande. Nenhum ser pequeno. Nenhum sentimento bom ou mau. Eu agora me tornaria plena e jamais ousariam entrar em meu caminho.


Zandra estava de volta!

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