Um
CUMPLICIDADE
O dia está lindo como em qualquer tarde ensolarada de São Paulo, o que praticamente é raro em meados de julho. Toda a tensão das últimas provas do semestre letivo pode ser descarregada das mais diferentes formas nestas férias, desde as insignificantes, como estudar ainda mais e conseguir a atenção de certos professores, até as extravagantes, como gastar, por exemplo, quinze mil reais em uma jiboia amazonense de dois metros.
Arredondar generosamente as notas dos alunos para não perder nenhum dia com algum aluno-caso-perdido foi uma inteligente estratégia do nosso professor. Contudo não foi bem o aproveitamento dos dias ócios que o motivou beneficiar uma turma inteira, não. Henrique precisava de mais tempo para descarregar todo desejo proibido acumulado das aulas em sua adorável esposa: Helena Stone.
Langer anda enfiada nos livros. Nos breves momentos que não está se esforçando para aprender um novo idioma ou lendo um novo romance a meiga garota prefere fazer companhia a sua única amiga, ainda que depois de inúmeras vezes diante do espelho do banheiro, ter se indagado mentalmente sobre a qualidade de tal amizade.
- Júlia o almoço já vai esfriar! – grita a senhora Langer.
- Já descendo, mãe. Escovando os dentes ainda!
"Ser filha única tem o seu lado bom. Não é preciso dividir nada com ninguém; nem roupas, nem o amor dos pais. Toda atenção é voltada para o unigênito". Pelo menos é assim que a nerd pensa – o único pensamento mais egoísta da garota, que, por coincidência é o mesmo de Eveline.
- A "Line" ligou, mãe? – questiona Júlia.
- Ligou sim. Disse que tem uma novidade para te mostrar. Já lavou as mãos, Júlia?
- Mãe! Eu não sou mais criança. Só falta agora me dizer que se eu não comer toda essa montanha de comida, não sairei com minha amiga.
- Adivinhou meu pensamento. Agora incline a cabeça e vamos agradecer.
Ser filha da dirigente do círculo de oração da principal igreja protestante do bairro e andar com uma trança quilométrica o tempo todo sobre moletons escuros não é lá um chamariz para rapazes no quesito beleza, mas, se tiver de agradecer por algo nesta oração, certamente o namoro com Hendry é o primeiro da lista.
Tudo bem que o rapaz usou a nerd feiosa para se aproximar de Eveline, porque os ouvidos complacentes dela serviram de terapia depois do chute. E ainda que tenha de ouvir constantemente que "pegou o resto da outra", Júlia parece feliz. Afinal também não é todo dia que se namora o garoto ícone do curso de educação física, ainda mais se este ícone acaba de se tornar agente cadete da polícia civil.
Eveline por outro lado, tem uma vida, digamos um pouco mais agitada; sua rotina baseia-se diariamente em passeios a lojas, boutiques, salões de beleza, boates, resorts no litoral paulista e um ou outro veterano interessante da faculdade. O tempo que sobra (se sobrar) é dedicado às amizades, melhor dizendo: a amizade.
- Mãe, a senhora ainda não me disse o que a Eveline tem para mostrar-me?
- Ah, Júlia, coisa de jovem, devo supor. Ela não me contou nada de mais. Apenas entendi que ela estava saindo de uma loja de animais, no Butantã. Já mandei você terminar de lavar essa louça.
- Entendo... – os óculos são ajeitados mais uma vez.
Neste momento o telefone toca salvando as unhas da Júlia de mais uma sessão de destruição.
- Casa dos Langer, Júlia falando.
- Porque você desligou o celular, sua cadela?! Estou há horas tentando falar contigo.

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Veneno
Fiksi Remaja" - Você venderia sua alma para conseguir tudo o que sempre quis? Eu vendi. E não estou nem um pouco arrependida. Final feliz e contos de fadas?! Se manca otária. Você vive no Planeta Terra!" >> Bem vindos ao lado negro das estórias de amor. <<