Rômulo estava ali, então. Os pés na calçada, com a grama roçando o bico de suas botas. Simplesmente ali, olhando o pátio do hospital, como se o mundo tivesse acabado de ser criado, com ele já ali, na semi-escuridão e no sereno. Era como o piscar de uma lâmpada. Tu estás em seu quarto quando a luz apaga; nem meio segundo depois, quando ela torna a acender, tu estás em no meio da rua, como se sempre estivesse ali. Algo mais ou menos assim.
Ele não conseguia se lembrar de onde estava antes, de como viera até ali, do que estava pensando. Ele reconhecia onde estava, mas sua mente estava completamente em branco. De repente, do nada, sentiu primeiro seu corpo estremecer em um calafrio fúnebre; só então, foi capaz de ouvir as vozes ritmadas, tão infantis e assustadoras em seu cântico quase ritualístico.
Sua mente então saiu do torpor em ondas de lembranças, retratos mofados de quão cruéis as crianças conseguem ser. As vozes frias, desafinadas e nada ingênuas de pré-adolescentes gritavam “William louco. Matou a mãe com um machado como um tronco oco. William louco. Com as mãos sujas, de alegria, gritava rouco.”
Uma de suas funções como segurança do hospital era impedir que as crianças internas em outros setores piorassem o quadro das internas da psiquiatria. Suas pernas se puseram a correr em sua comum reação àquele estímulo. As muitas vozes vinham claras, mas de longe; possivelmente da pracinha, em local totalmente oposto de onde ele estava.
A temperatura baixava a cada passo em direção à seu destino, mas Rômulo só sentiu quando a brisa fria e úmida tornou-se um vento gélido e cortante. A luminosidade diminuía em proporção, até que a lua era a única fonte de luz, iluminando sozinha o caminho do segurança.
Foi possível vislumbrar a ciranda de vultos disformes ao dobrar a esquina do prédio gigantesco do hospital. “Hey”, ele gritou, correndo e sacudindo os braços; mas nenhum som foi proferido, ou qualquer movimento executado. O corpo de Rômulo pareceu ficar inerte, enquanto sua mente pareceu desprender-se e avançar contra os vultos; uma sombra, negra e luminosa ao mesmo tempo, rompendo o circulo de fumaça opaca e densa, quase sólida.
A ciranda se desfez, e o versinho apavorante deu lugar à um choro não menos terrível. Os soluços e a respiração pesadamente entrecortada fizeram o coração do segurança trincar de frio. O canto ofensivo dera lugar à um canto de solidão e tristeza incontavelmente mais desconfortável. A dor expressa naquele som gutural, estrangulado, não poderia ser humana.
Rômulo se aproximou cautelosamente. As pernas dormentes respondendo moles aos comandos do cérebro. Uma lágrima escorrera por sua face e agora secava ao vento em uma linha grossa e brilhante. O vulto agachado em posição de feto movia-se apenas arqueando as costas, de acordo com sua respiração.
O segurança avançou lentamente, passo à passo, para mais perto do vulto embaixo da copa gigantesca de uma arvore qualquer.. Seu coração parecia acelerado, suas têmporas pareciam latejar, mas era apenas impressão sua. Sentia os sintomas normais de uma reação àquele estimulo, mas eram todos falsos.
Deveria estar à mais de quinze passos da criança encolhida quando esta levantou-se com um urro seco. As únicas coisas definíveis foram sua forma humana e dois pontos brilhantes, incandescentes, na altura dos olhos. Só pôs-se de pé, e o vulto já estava correndo para longe.
O chão sumiu sob seus pés. Quis correr atrás da criança, ao mesmo tempo que quis correr para longe dela. Sentiu-se perdendo a consciência, talvez até mesmo a sanidade; sua cabeça latejava e o mundo à sua volta escurecia mais, balançava e então clareava até esbranquiçar e balançava novamente.
Suas pernas vacilaram, cederam, e ele viu o chão se aproximando até sentir um impacto doloroso contra suas costelas. Era uma bengala, jogada contra seu peito, lhe impedindo de cair.
Rômulo correu os olhos em direção ao negro à seu lado; velho, alto e forte, tão parecido com seu avô antes do câncer lhe comer as entranhas, tão parecido com o que seu pai teria ficado naquela idade, não fosse o incidente com o machado.
- É cedo para desmoronar, filho – disse o velho, a voz rouca, mas firme.
- Senhor Freeman, eu...
- Não diga nada. Tu esqueceste do meu pedido, não há nada mais o que me dizer – recolocou a bengala no chão e voltou a apoiar-se nela.
O homem mais jovem ficou ereto com dificuldade, mas nenhum pouco “mareado”. Voltou-se na direção do velho, mas este já se encaminhava para dentro do hospital. Pensou em gritar, dizer que não se esquecera nada, que... que o que, mesmo?
- Eu sei o que aconteceu, filho... Mas ainda não acabou – disse o velho, sem olhar para trás, sumindo no umbral da porta.