Landau entrou em seu escritório por uma passagem lateral. Além do próprio diretor do hospital, apenas a enfermeira Lisa e Gerard, o chefe da segurança sabiam daquela entrada paralela. A porta fechou-se sozinha atrás do psiquiatra, enquanto ele olhava receoso para as mãos sujas de sangue, como em dúvida se era certo o que acabara de fazer.
Entretanto, a dúvida que seus olhos demonstravam era apenas uma pequena lembrança em sua alma – se é que ainda possuía uma – de uma dúvida que já não tinha desde a segunda vez que entrara naquela sala escondida.
Atravessou rapidamente o escritório e lavou-se na pia do banheiro. Sangue fresco não era difícil de sair, seja das mãos encharcadas, seja do rosto respigado. Jogou o jaleco e os sapatos indiferentemente junto às demais peças sujas, como quem joga uma camiseta suja apenas do leve suor de um dia frio.
Devidamente limpo – mãos, rosto e vestes, mas não o músculo negro que bombiava o seu próprio sangue –, Landau serviu-se de uma boa dose de uísque e sentou-se à sua escrivaninha. Olhando fixo para a porta principal, a única nas plantas e documentos do hospital, e para qualquer um que entrasse ali, enquanto pegava o chaveiro do bolso, encontrava uma chave e, com ela, abria a primeira gaveta de sua mesa.
Pegara um frasco de comprimidos e o depositava ao lado do copo cheio e sem gelo. Vasculhou, então, com as pontas dos dedos até encontrar um pequeno filamento que, ao puxar, retirou todo o tampo da gaveta, revelando um fundo falso, e retirou de lá uma folha A4 já amarelada. Fechou e chaveou a gaveta logo em seguida.
Só então desviando os olhos da porta, deixou-os repousar sobre a folha rabiscada à sua frente. Abriu o pequeno frasco e retirou de lá o primeiro comprimido, colocou-o na boca e empurrou-o com a língua até os cisos. Mastigando, avaliou o desenho que lhe tirara muitas noites de sono, buscando por um sentido – pelo menos um único sentido que fosse – para aquela imagem aterradora, querendo ajudar o menino que o fizera.
Tomou o primeiro gole, observando o traçado tremulosamente firme e cada marca onde a ponta quebrara, lembrando de que William, mesmo hipnotizado, esperara que Landau se aproximasse, pegasse o lápis, o apontasse e entregasse novamente à mão posicionada sobre a prancheta do menino que desenhava em pé.
Levou mais um comprimido à boca, arrastando-o com a língua pelos dentes do outro lado. Enquanto mordia, olhava para aquilo que descrevera à sua namorada como “o chá do Chapeleiro aos pés de Cristo”. Ninguém que viu aquele desenho conseguiu encontrar qualquer lógica nele, qualquer sentimento que pudesse tê-lo norteado; era bem-feito demais para alguém hipnotizado, em choque ou qualquer coisa que o valesse. Era bem feito demais para representar qualquer coisa que um garoto como William pudesse ter visto e/ou feito, tendo em vista tudo o que e como aconteceu.
Uma imagem que certamente não teria significado, atualmente, para Landau, não fosse um achado no sótão da Mansão Blake. Não fosse a ponta do precipício no qual o doutor se jogara sem saber, mas que, ao perceber como, porque e para onde caía, procurou com vontade tomar cada vez mais impulso para baixo. Algo que, talvez, qualquer pessoa faça, frente a conquista de novos poderes, sejam, por exemplo, econômicos, ou sociais.
No dia seguinte ao desenho, cinco dias depois do incidente, a mansão estava completamente vazia. Azmaria estava internada em estado de choque; William era acompanhado por uma equipe exageradamente grande de psicólogos, psiquiatras e psicopedagogos que discutiam o efeito como causa de uma educação falha, bullyng escolar, negligência materna, ou qualquer explicação sem cabimento; Isabella estava em uma gaveta no IML à espera de um parente que retirasse o corpo, ou o que foi possível reconstruir dele; e o policial, encarregado de impedir que pessoas não-autorizadas entrassem e mexessem onde não deveriam, dormia tranquilamente dentro da viatura estacionada na entrada da garagem.