“Sinto a falta dele como se me faltasse um dente na frente: excrucitante.”
-Clarice Lispector-Avalon
Quando cheguei em casa felizmente a chuva já havia cessado. Em geral, eu gostava de chuva. Costumava achar que ela refletia meu humor: quase sempre sombrio. Me lembrava nitidamente do que meu avô costumava me dizer quando eu tinha meus 7 anos e o céu começava a chorar enquanto eu e ele brincavamos de bola pela areia da praia . Era algo como "Quem deseja ver o arco-íris, precisa aprender a gostar da chuva". Mas naquele dia eu estava forçando o meu humor a permanecer lá no alto e estava fazendo aquilo por mim e por meu pai. Gostava de vê-lo feliz e saber que o motivo daquilo era a minha própria felicidade. Era raro e na verdade não me lembro da última vez que aquilo havia acontecido, até o dia de hoje.
Ao entrarmos em casa olhei ao redor deixando meus olhos correrem pela sala e me permiti suspirar. Era bom estar em casa. Minha casa. Sem constrangimentos. Sem desconhecidos. Só eu e meu pai.
- Avalon parece que temos correspondência - Meu pai abaixou próximo a porta, pegou todo o material deixado pelo carteiro e ia checando de um por um, sempre tão cuidadoso - Contas... Multas... Carta do Fletcher... Mais contas...
Meus olhos saltaram das órbitas ao ouvir aquelas palavras.
- Carta do vovô? - Perguntei em êxtase e tomei o envelope de cor clara das mãos de meu pai.
Ao por as mãos no envelope não conseguia descrever minha alegria. Fazia tempo desde a última vez que eu e meu avô nos comunicavamos por cartas. Me chame do que quiser. Ultrapassada. Estranha. Excêntrica. Mas via aquilo como um gesto de carinho e muita consideração, afinal, quem parava para escrever e enviar uma carta para outra pessoa nos dias de hoje? Isso sem contar que eu particularmente gostava da excentricidade de meu avô, Thomas.
O que dizer sobre ele? Bom, um senhor de quase 70 anos, muito bem conservado, estudado, nada careta e que sempre sabe exatamente o que dizer. Meu avô sempre foi uma pessoa naturalmente feliz, e durante muito tempo, era o único que conseguia me fazer sorrir verdadeiramente com suas piadas e histórias de viagens... Oh suas viagens! Em seus quase 70 anos, Thomas Fletcher já havia visitado o que provavelmente era 75% do mundo e ele fazia questão de me contar sobre cada visita, cada lugar, como eram as pessoas, a comida, as praias, os costumes...
Minha mãe também adorava viajar. Ficava simplesmente radiante quando o fazimos. Tinha boas lembranças de cada viagem que já havia feito na vida, mesmo que não fossem extraordinárias como as do meu avô, e me sentia feliz, porque eu sabia que aquilo - as lembranças físicas e mentais - ninguém poderia me tirar.Subi as escadas rapidamente e pude ouvir um "Cuidado!" vindo de meu pai enquanto preparava nosso jantar. Entrei em meu quarto e tranquei a porta sentindo o cheiro fraco de mofo que estava ali pelo fato de não costumar abrir as janelas e deixar a luz entrar com frequência. Ascendi a luz fraca do abajur, que era suficiente para minha leitura, e me setei na cama.
Ao olhar para envelope pronta para abri-lo notei seu selo. Uma praia ao entardecer, com a água refletindo os tons de laranja e rosa do céu e grandes palmeiras. Maui, no Hawaii. Dava pra acreditar que esse cara tinha 67 anos?
Finalmente tirei a carta do envelope cuidadosamente e respirei fundo antes começar minha leitura ."Minha querida neta, sinto sua falta e o Hawaii é de fato muito bonito. Você iria adora-lo. Ainda espero ansiosamente pelo dia em que se tornará maior, quanto seu pai extremamente protetor deverá, espero, parar de esconder o mundo e os garotos de você. Fiquei sabendo sobre sua admissão na Cypher Academy e não podia estar mais orgulhoso, mas lembre-se, minha proposta de te levar comigo em viagens como assistente sênior de biólogo e geólogo ainda está de pé.
As praias são lindas e possuem fauna e flora vastas. Enquanto andava e fotografava imaginei o quanto seria bom te ver surfando aqui, como fazia antigamente. Mas não foi para isso que fui ate aquela loja de conveniências e comprei o necessário para lhe enviar esta correspondência. Venho nessa carta lhe avisar que estou voltando para Malibu e quero aproveitar os meus dias de folga ao lado de minha família, minha neta querida, e meu genro desinteressante. Gostaria que fossem me receber no aeroporto, já que minha chegada esta prevista para o dia 4 deste mês.Com amor, de seu coroa aventureiro, Thomas Fletcher.. vovô.
Ps: Espero que seu pai não tenha se desfeito do quarto de visitas para fazer um escritório. Se ele o fez, atingirei aquela cabeça oca dele com a minha câmera."
Quando terminei não pude evitar sorrir feito idiota. Meu avô finalmente viria me ver! Naquele dia eu tinha realmente um motivo pra sorrir! A aquela altura, porque estava realmente nas nuvens, eu nem me importava com a vergonha que havia passado na escola e com o fato de ter que voltar lá amanhã.
Ouvi o bater da porta e olhei em direção a ela.- Ava? Está ai? - Ouvi a voz de Mathew atrás da porta e levantei-me a destrancando - O jantar está... Por que esse sorriso?
- Nada demais... É que eu so... Espero que tire seus livros do quarto de visita a tempo. O senhor Fletcher está a caminho.
As bochechas do meu pai se contrairam em um sorriso. Um grande e sincero sorriso. Talvez porque mesmo que ele e meu avô teoricamente se detestassem, ele sabia que aquilo me fazia infinitamente feliz, ou talvez o ódio significasse admiração afinal. Quem sabe os dois.
O homem a minha frente se recompôs e voltou a sua postura seria e preocupada de antes.- Nesse caso - Ele ficou pensativo por segundos - acho que precisamos de uma faxina.
- Correção - Levantei-me - você fará uma faxina. Eu tenho partituras para estudar.
- Ok então Mozart - Ele disse com sarcasmo, típico - O jantar está na mesa, hoje você lava a louça. Eu seco. Depois disso pode ler um pouco e depois direto pra cama.
- As vezes suspeito de que sua mente parou no ano em que fiz 14 anos. - Disse antes de sair do quarto.
- Na verdade, 15. E coma as verduras!
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BLIND || J.B ||
FanfictionNão eram só os olhos que o impediam de ver, mas a cegueira de não querer enxergar. A realidade o açoitava a alma e ignorá-la o apaziguava a vida. Passou a cultivar o que o aprazia e descartar tudo o que amordaçava a voz da alma. Esquivar-se das dore...