Que educação a minha, não? Falando de minhas razões sem sequer mencionar os meios. Sim. Estou morto, para quem ainda tinha uma ponta de dúvida. Quaisquer que fossem estes, ainda precisava de um estopim. Quem dera fosse o fato de que minha casa já não me pertencia.
Quem dera fosse eu. Quem dera fosse loucura. Foi algo maior, digo. Foi algo do qual não pude me arrepender. Algo que não me apetecia. Algo do qual eu sequer tivera a culpa.
Foram as pessoas.
Mas devemos parar de generalizar o que pode ser melhor explicado. Não vou citar nomes, é falta de educação, até mesmo para uma alma penada, ou espírito — no que sua religião permitir que acredite, — mas devo atribuir identidade, para a melhor compreensão da participação de tal ideia de pessoa, de tal comportamento, no meu processo de morte — que, diga-se de passagem, perdi a noção de quando começou.
Mas creio não pecar ao dizer que somos não mais que ideias e comportamentos. Ou, como a sociedade do falso moralismo adora incitar, o invólucro pouco importa. Acaba sobrando, infelizmente, o que há em nós de mais puro e medíocre — ou ambos, uma vez que são suscetíveis a serem a mesma coisa — aquilo que realmente somos, nossa essência. Pensamos, agimos, falamos. Esses somos nós, não mais que pensamentos e atos.
Mas alguns atos isolados tiveram um peso maior no que considero a minha grande despedida. Alguns atos, alguns cheiros. Certos sabores no ar. Cheiro de metal, gosto de levedo.
Não quero desmitificar o matrimônio e seus laços. Devo mencionar que trato de eperiências de cunho particular — não leve-as como generalização. Mas não posso dizer que o matrimônio me trouxe o conforto de um lar — uma das promessas implícitas de tal união.
Costumo pensar que alcoólatras são como plantas para donos de bar. Basta regá-los aos poucos e darão frutos. Terá retorno aquele que mais cultivar suas belas plantas. À base de álcool.
É místico como o ser humano é facilmente tomado. E pensar que o único animal racional pode ser domado por um líquido, proveniente de um avanço químico do próprio — outra característica dos humanos, avançar rumo à sua destruição. Neste ponto me assemelho a ele. Me assemelho ao meu pai. A única diferença é que ele destruiu a mim também enquanto a si mesmo. E minha destruição deu-se por completa no silêncio do meu quarto. Nunca quis arrastar alma nenhuma para o inferno de mim mesmo, enquanto tudo o que ele fez foi queimar-nos junto de si.
Falei que não ia citar nomes. Mas uma figura de tal relevância a aqui aparecer por primeiro merece ao menos um apelido. Uma letra. S. De superior. Vamos dar a ele a chance de se associar ao posto uma vez em sua miserável vida.
Doutor S começou sua carreira de grande frequentador dos bares da cidade aos 20 anos, como conta. Às tantas já estava enlaçado com a doce e adorável mulher que tornara sua esposa. E eram um casal tão lindo, dizem as fotografias. Mas não acreditemos nela. O exato instante que um raio atinge a terra é de beleza e luz extrema. E elas captam apenas o intante. Tais superficialidades não nos interessam.
Não estava lá para festejar, mas para tentar desprender-se da realidade. Pela primeira vez na vida, o jovem mimado enfrentava as consequências de seus atos. Um embrião. Um feto. Um filho. Os estágios de seu problema.
Perguntara — audaciosamente, e com genuína esperança — se sua mulher não poderia, com a gentileza de uma florista, abortar o filho. Retirá-lo de seu ventre quente e acolhedor como se retira uma ave do ar, como se retira um peixe d'água. Devia ter previsto que nem todos seus atos seriam acobertados pelos seus pais.
Desde tal dia, Doutor S passou a encher a cara. Trocou a casa pela tontura do álcool, pela sensação de leveza, como se estivesse em um avião — e como se esse avião não tivesse que pousar novamente na realidade quando lhe faltasse o combustível.
Às vezes acho que ele só queria morrer como um herói, rasgando os céus em meio às suas viagens. Mas espero que não lhe seja concedido tal privilégio. Quero que esteja lúcido ao partir, para ver a realidade o deixar, como almejara sua boemia toda.
Mas o momento que mais me enojou de estar vivo foi quando ele chegou em casa, após ser expulso de um bar local. E resolveu que toda a desgraça que ele mesmo buscara fora causada por aquela que sempre o esperava de luz acesa. E que a solução seria deformar seu rosto. Não é o que fazemos quando queremos que tudo melhore? Não.
Naquele momento, não quis bater no Doutor S. Não quis fugir. Quis ser seu alvo. Quis morrer à socos, para aprender que para ele era o que importava, transmitir a raiva acerca de sua miséria interior para aquele que recebesse melhor sua força, sem a ameaça de reagir. Seria muito para alguém como ele, o risco de ser machucado.
Todo seu egoísmo em um só ato. E toda a sua covardia.
Apesar de a senhora C não ser santa, — explicarei a ironia acerca deste fato e a escolha de seu apelido, — um crime ela não cometera. Nunca abandonou seu marido. Pelo menos para um dos dois as promessas não foram inteiramente vazias. E justamente para aquele que acolhia nos braços o pranto de um menino de nove anos de idade.
Já cansado da vida.
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Crônicas Suicidas
Ficción GeneralO que fazer quando você acorda e simplesmente não se reconhece? Quando se cansa até mesmo das menores coisas, quando tudo no que sempre encontrou alguma familiaridade subitamente passa a ser estranho, insuportável pra você? Quando finalmente se che...