Os primeiros raios solares começam cortar por entre o labirinto de cimento da grande Nova Iorque. O belo e caloroso clarão me cega por longos segundos.
- Mais uma noite em claro não é Co... - aliso o pêlo do Copper, então percebo que o mesmo se contorce em um longo suspiro. - Acordei você não é mesmo amigão.
Copper se levanta, passando a calda por todo meu braço.
- Está na hora de irmos. Logo a Sra. Gillie acorda e ela não vai ficar muito feliz em nos ver aqui de novo. - me levanto com apoio das barras. - Não entendo o que pode estar me tirando o sono durante tantas noites seguidas... É como se algo estivesse martelando em minha mente. Algo tentando me guiar... Bom, vamos lá!
Bato na roupa para me livrar do pó, caminho pela sacada cuidadosamente até encontrar a escada de incêndio. Copper salta pelo guarda-corpo até o patamar logo abaixo, tudo em um silêncio invejável. Faço o mesmo movimento, girando o corpo agilmente, agarrando com as mãos e encaixando os pés nas laterais da escada de metal enferrujado. Solto o corpo e escorrego até sentir o impacto com o patamar.
O gato já se preparava para o segundo salto ao mesmo tempo em que eu ja começava a descer o próximo lance de escadas. Esse é um dos nossos rituais diários. Apostar corrida até o beco mais próximo.
Assim que o chão se aproximava, juntamente com o cheiro ruim das latas de lixo, uma escuridão tomou conta de mim e eu já não conseguia enxergar mais nada. De repente me vi em um lugar totalmente escuro, com um holofote somente sobre mim, me deixando apreensivo. A sensação de que várias pessoas me observavam era enorme, mas, por mais que forçasse meus olhos a verem algo, nada se via.
- Tudo que você procura está na noite, Steven... - uma voz aguda abalou o silêncio do local. Embora eu tentasse encontrar de que direção ela saía, era impossível. Como se o dono da voz estivesse em todo lugar ao mesmo tempo.
- Que lugar é esse? Quem é você? Do que está falando? - meu coração acelerava a cada segundo. O frio do solo subia pelas minhas pernas, como se estivesse abandonado, livre de tudo, tanto de móveis quanto de sentimentos. Era desesperador.
- Sua cabeça está confusa. A noite é o único momento que sua mente começa raciocinar com seu verdadeiro potencial, o que não te permite dormir... Você está no caminho certo Steven. Todas as respostas estão na noite.
- Como você sabe de tudo isso? Que brincadeira é essa? Onde é que estou? Quem é você? - gritei, tremendo.
- Você está n'O Albergue, rapaz. Todos passam por aqui antes da seleção. - sussurrou a voz.
- Seleção? Seleção para que? O que é tudo isso? - ajoelhei-me.
- Todas as respostas serão respondidas com o tempo Steven...
- Eu quero respostas agora! O que está acontecendo?
- Não deixe de acreditar. Continue seguindo a luz do luar... - assim que a voz cessou, passos começaram ecoar por todos os lados. - Hocus Pocus. - um estalo ouve-se ao fundo, como uma faísca.
E em um piscar de olhos, senti uma forte pancada. Me vi de cara com o chão, dolorido, tentando entender se tudo não passava de um delírio, depois de tantos dias sem dormir. Levantando os olhos aos poucos, vi Copper me encarando, glorioso.
- Ok. Você ganhou de novo... - sorri....
Caminhamos por algumas horas por perto dos comércios. Estava tudo muito calmo, embora as buzinas ja rugiam durante àquela manhã. Não haviam tantas pessoas nas ruas como de costume.
A padaria, o mercado, o antiquário, a livraria, tudo estava quieto, sem movimentação alguma.
- Que estranho...
Copper acelerou mais o passo e parou em frente a um pequeno estabelecimento, quase metade do tamanho dos outros, com revestimento de madeira gasta pintadas de verde escuro, enormes vitrines mal limpas que dificultavam de certo modo a visão dos produtos. A lojinha do Sr. Mallark, um completo amontoado de objetos e bugigangas para qualquer colecionador obsessivo.- Certo Copper - gargalho -, vamos conversar com o Sr. Mallark.
Empurro a pesada porta de madeira, que automaticamente toca o sino sobre ela. Um senhor de avental sujo e camiseta laranja florida sai do fundo da loja, com um olhar cansado por trás de um par de óculos garrafais. Seus cabelos grisalhos indicavam mais de sessenta anos, mas o orgulhoso homem nunca revelou sua verdadeira idade.
- Olá jovem Flash Hands... Muitos lucros hoje? - encosta-se no balcão velho, limpando as mãos em um pedaço de trapo.
- O movimento está parado hoje Sr. Mallark. Muito estranho. Está acontecendo algum jogo? - perguntei, passando com a ponta dos dedos sobre um mesa cheia de colares, caixinhas de música e enfeites de coruja.
O silêncio do homem tornou-se estranho. Assim que levantei os olhos, o vi quieto, com um olhar assustado sobre mim, tremendo.
Antes que pudesse argumentar, meus dedos se encontraram com algo metálico, frio, que ao simples toque fez meu corpo enrijecer, e ao fundo, àquela mesma voz sussurrava algo que somente eu conseguia ouvir. "Tudo se encontra na luz do luar".
Quando o lampejo se fora, baixei a cabeça e vi o objeto. Um colar, cujo cordao feito de um couro bem comum, onde havia um pingente de metal, mais frio que o comum. Encaixei-o em meus dedos e o aproximei do rosto. Um objeto circular, com serpentes entalhadas por toda sua volta, e no seu interior haviam pequenos pontos de luz que dançavam por uma espécie de líquido escuro. O espaço em miniatura, com constelações e nebulosas. Fiquei hipnotizado pela riqueza e pela beleza do acessório. Mas por que ele estaria em uma loja de quinquilharias?
Assim que pensei em perguntar, o sino da porta avisa um cliente. Me senti aliviado, pois percebi que o homem ainda estava em choque por algum motivo.
- Um bom dia Gerald. - disse o homem que adentrava a loja. Aparentava no mínimo dois metros de altura, com uma barba escura bem expessa, usava um terno preto que lhe caía muito bem e portava uma bengala prateada, que aumentava ainda mais a imagem de mafioso. - A quanto tempo não te vejo, meu velho amigo.
Como se tomasse um choque de realidade, o velho vendedor saiu por de tras do balcão demonstrando uma atitude que me surpreendeu, como se ele não fosse tão velho quanto demonstrava. Aproximou-se do homem e lançou-lhe um olhar rígido.
- Realmente já fazem anos que não o vejo Frans.
O homem gargalhou, e pelo seu tamanho, era como se conseguisse estremecer toda a estrutura da loja.
- Me surpreende você ainda estar nesse... Lugar... - passou a caminhar pelas diversas mesas próximas à vitrine. No mesmo momento, Sr. Mallark me olhou rapidamente, colocando-me atrás de seu braço e movimentando a cabeça indicando a porta do fundo. Copper caminhou graciosamente por entre os objetos, esbarrando em um conjunto de xícaras, o que chamou atenção do homem.
- Mas que peça peculiar... - aproximou-se Frans, com umas das mãos que mais parecia uma pá.
- Você sabe que não pode interferir nesse assunto. - disse Gerald, agarrando o punho do homem antes que encostasse em mim.
Soltou-se em um brusco e ágil movimento, saltando para trás com as mãos na bengala, aparentando estar pronto para atacar a qualquer momento.
- Você nunca foi pário para mim Gerald! Deixe que eu leve o colar! Deixe que a gente cuide do garoto!
- Nunca! Vocês sabem muito bem que o destino dele não é esse!
Ambos se olhavam fixamente, e eu só consegui agarrar Copper sem saber o que exatamente estava acontecendo. Dei um passo para trás, Frans percebeu e logo estendeu a mão, que começou a brilhar.
- Vá Steven! - gritou Sr. Mallark, girando em minha direção e me empurrando para o balcão. Só tive tempo de ver uma esfera de luz explodir nas costas do Gerald e tudo ser encoberto por nuvens de poeira e cinzas. Ergui a gola da camisa até o nariz e corri para os fundos da loja, com Copper debaixo de um braço e o colar no outro.
Me encontrei em um pequeno armário cheio de ferramentas e relógios empoeirados. Não havia porta alguma, somente uma janela de onde nascia uma luz que dava vida ao lugar. Me apressei em subir nas mesas no momento em que ouvi os estrondos se aproximando, e eu não estava pronto para saber quem estava vindo. Empurrei com toda força que me ocorreu, e pela brecha coloquei o gato e o colar do lado de fora, onde quer que eu fosse sair.
O balcão é destruído e a fumaça adentra ainda mais forte no local.
Me apoio e forço a saída do lugar, sem lugar algum para apoiar os pés, sentindo como se patinasse nas paredes.
Quando senti o tremor dos passos do homem adentrar o armário, deslizei para fora como uma serpente, acolhi a tudo e corri. Corri o mais rápido possível e sem olhar para trás enquanto o homem praguejava em alguma língua que não pude entender.
O que é que tenha acontecido, eu sabia de uma coisa... Estou morto.
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A Trindade - O Segredo dos Amuletos
FantasíaSteven vê sua vida virar do avesso após acontecimentos estranhos em sua vida. Ele descobre, então, que não é apenas um jovem órfão morando nas ruas de Nova Iorque, mas sim que sua importância chama atenção de muitas pessoas, boas e ruins. Em quem co...