Como num suspiro, senti um puxão no peito, o ar congelava meus pulmões a cada respiração que dava. O prédio, os lobos e os urros de ódio de Frans, tudo desapareceu e eu me vi em um vácuo escuro, silencioso e vazio. Era como se eu não sentisse mais nada, nem mesmo meu corpo, mas ainda assim tinha certeza de que estava ali. Por um momento, lembrei-me de Amy. Não conseguia sentir mais sua mão, nem ouvir mais o miado de Copper. Antes que pudesse entrar em completo desespero, o toque repentino com o solo me causa um choque estático e me traz de novo à realidade. Um incrível alívio me percorreu quando pude ver Copper e Amy novamente. Um sentimento que sumiu assim que vi o lugar onde estávamos.
Uma floresta totalmente protegida da luz do sol, que me forçava cerrar os olhos para distinguir os traços de Amy de todo o resto retorcido ao fundo, que eu esperava que fossem galhos. Percebi um largo sorriso no rosto dela.
- O que foi? - indaguei.
- Você. Você foi incrível! Conseguiu nos trazer até aqui, e sem treino algum! Fo-Foi demais! O modo como desaparecemos e deixamos Frans lá, aos berros, sem saber para onde fomos! E os lobos... Puf! Bow! Chuva de cinzas sobre nós! - animou-se ela, me surpreendendo com tanta alegria.
- É... Ainda não sei como fiz aquilo. - olhei para o topo fechado das arvores - Simplesmente senti como se um poder muito grande me percorresse todo, não sei explicar... E esse pingente... - encarei o cordão, que agora emitia um frágil brilho - Aqueles lobos, coitados, não queria que fossem explodidos.
- Eles estavam tentando nos matar Steven. - indignou-se ela - Mas não se preocupe, eles vão se regenerar. Não foi a ultima vez que os vimos, acredite. - cantarolou, me dando as costas e caminhando - Agora venha, já estamos chegando...
- Mas, chegando on... - ela levantou uma das mãos em sinal para que me calasse.
- Menos perguntas Steven. Aqui, quanto menos você falar, melhor. - ameacei contestar, mas preferi não saber o real motivo dessa frase.Caminhamos por longos minutos. Eu não conseguia enxergar um palmo à frente dos olhos e tropeçava o caminho todo, mas conseguia seguir o som dos passos da garota, que me parecia ter uma enorme certeza do que estava fazendo.
Os sons de galhos estalavam por todos os lados, me deixando cada vez mais nervoso, afinal, qualquer coisa que quisesse nos atacar, agora era a hora, pois eu não iria nem saber de qual direção viria. Podia ouvir um murmúrio vindo da minha frente, algo como uma oração, que parecia vir de Amy, e uma respiração forte, que com certeza era de Copper, em seu sono profundo.
- Estamos chegando... - disse brevemente, voltando ao seu murmúrio. Os sons ao nosso redor aumentavam a cada passo.
Trombamos assim que ela parou, de frente ao que deduzi ser um arco formado por duas arvores que aparentemente despencariam a qualquer momento. Ela me lançou um olhar firme, com um brilho um tanto estranho.
- Acho melhor proteger os olhos. - sussurrou, encostando as pontas dos dedos numa cortina de folhas, cipós e mais outras coisas, que pareceram se retorcer. Assim, abriu-a num só movimento, inundando meus olhos com luzes inacreditavelmente fortes.
Fiquei cego por longos segundos, enquanto ouvia Amy agradecer a algo, Copper despertando-se e o remexer das folhas se fechando atrás de mim. Assim que minha visão foi voltando ao normal, não conseguia acreditar no que estava à minha frente.
- O-O quê? - gaguejei.
Estávamos perante à uma enorme construção. Os muros altos, negros, com portões gigantescos de mesma cor, nos separavam de uma magnífica mansão, as paredes cinzas refletiam as luzes dos diversos postes do lugar. O telhado azul marinho emitia um brilho assustador. Haviam inúmeras janelas. O jardim a frente era intrigante de tão perfeito, as flores pareciam formar desenhos, pavões perambulavam de um lado a outro e no centro de tudo, uma fonte dividia o caminho em dois.
A ponto que nos aproximavamos, pude distinguir a estátua que jorrava água. Eram três pessoas sentadas em uma pedra, um homem no centro e dois ao seu redor. Todos pareciam nos encarar, o que me dava receio quanto a entrar no estabelecimento. A água escorria dos olhos de cada um.
- Então... - a garota me encarava, sorrindo com a minha reação.
Não conseguia formar frase alguma. Como um lugar assim poderia ter sido construído atrás de uma floresta tão densa?
De frente ao portão, percebi um símbolo no centro dele. Um grande triângulo, com suas arestas retorcidas e pequenos desenhos em cada ponta.
- Estamos aqui, senhores. - disse Amy. Ela colocou a mão direita estendida sobre o lado esquerdo do peito, como se quisesse acalmar o coração. Por um momento inclinou-se a cabeça de olhos fechados em forma de reverência.
Admirei a cena e de repente os portões se abriram estrondosamente, me fazendo saltar. Assim que adentramos, podia ouvir um leve som que antes não lembrara ter ouvido. Era uma música um tanto sinistra de tão calma.
Rodeamos a fonte, caminhamos mais alguns metros e paramos diante à enorme porta, de mogno, com batedores em forma de realistas e douradas cabeças de leões. Parecia que a qualquer momento uma delas rugiria para nós.
- Aqui estamos Steven. Bem-vindo à Trindade. - então as portas se abriram, revelando o interior daquela imensa construção. O piso refletia cada passo nosso. Haviam animais entalhados em todas as diversas colunas do lugar, que por sinal pareciam ser de mármore puro. Admirei a grande escadaria no centro, que se dividida e subia para o próximo andar por lados opostos.
Ao fundo, as portas se fecham e um homem de terno surge nos olhando, sorrindo.
- Olá senhores. - disse, tirando os óculos escuros - Como é bom vê-los em perfeito estado. - alisa o pêlo de Copper.
Meus olhos o encaravam, como se estivesse hipnotizado. Ele estava todo alinhado e transmitia uma elegância fenomenal, com seu terno escuro e uma cartola. Seus cabelos já eram grisalhos, mas somente lhe dava ainda mais a imagem de um banqueiro muito bem de vida.
- Onde estão meus modos. - disse finalmente ao notar meu olhar curioso - Eu sou Bartos. Rúbeo Bartos. - estendeu uma das mãos, na qual apertei, cumprimentando-o - Srta. Sheridan, seu quarto já está pronto. Lembra como chegar até ele? - sorriu o homem - Quero mostrar ao Steven seu dormitório. Acho que ele necessita de respostas.
- Claro Sr. Bartos. - então deu as costas, subiu as escadas, seguindo para o lado direito.
- Por aqui Steven. - guiou-me.
As perguntas fervilhavam na minha cabeça, todas queriam sair ao mesmo tempo, e Rúbeo parecia se divertir com tudo isso.
- Sr. Bartos, o que é tudo isso? - perguntei, finalmente.
Por um momento ele pareceu não entender, então piscou os olhos, arrumou a gravata e chegamos no segundo lance de escadas, que ia para a esquerda.
- Você deve ter notado, desde pequeno, que possuía uma habilidade fora do normal, correto? - assumiu um tom sério - Mas em uma certa idade, seus poderes passam a assumir um impacto ainda maior, e assim, conseguem viajar por entre as dimensões, nas quais foram criadas para proteger o mundo normal, de toda nossa peculiaridade. - sorriu ele, com a última palavra.
Concordei com um movimento da cabeça, me lembrando que a pouco, os ambientes pareciam me confundir, alternando as aparências por diversas vezes. Tentei falar o mínimo possível para não atrapalha-lo.
- A mágica vai muito além do que só truques com cartas. Ela é uma arte muito mais forte e antiga do que muitos pensam. - diz - Tão forte, que muitos não conseguem dominá-la e acabam se tornando obscuros por dentro...
Fitei o chão, entendendo que estávamos falando de Frans.
- Nos nossos primórdios, houveram três grandes mágicos que usufruíram com maestria de seus poderes, cada um em seu tempo, dando origem a novas especialidades na mágica. - falou, com orgulho na voz - Jean Eugène Robert-Houdin, o ilusionista; Harry Houdini, o escapista; e o mais poderoso de todos, Theodore Annemann, o mentalista. Eles são os Duques. Seus legados foram tão grandes que dividiram o mundo mágico nessas artes. - sorriu - O ilusionismo, o escapismo e o mestre de todos, o mentalismo. - indagou - Claro que há muitas outras artes, mas nenhuma tão forte quanto essas três.
- Mas por que o mentalismo é mais poderoso que as outras, Sr. Bartos?
- Ora Steven. O mentalismo consiste em você prever os movimentos do próximo, induzi-lo a fazer coisas que não faria em plena consciência. - ele me da um leve puxão, sempre encarando o caminho a frente, me salvando de colidir com uma mesinha marfim encostada na parede que não havia notado antes. Como ele podia ter previsto que não conseguiria desviar daquela mobília?
Ele sorriu, como se pudesse ler meus pensamentos.
- Claro, o Sr. é um mentalista. - finalmente disse, ligando os pontos.
Ele gargalhou.
- Sim. Sim. Tenho que parabenizá-lo, muitos demoram dias para descobrir isso. E confesso que me diverti muito ouvindo seus pensamentos dentro da floresta do refúgio.
Por um momento me senti envergonhado, e com medo de pensar qualquer coisa, sabendo que ele podia ouvir tudo.
- Você se mostrou muito corajoso no dia de hoje Steven. Poucos enfrentam tantos perigos com tal firmeza quanto você. - colocou a mão em meus cabelos.
- Já soube de tudo?
- Não é de hoje que Frans tenta converter jovens aprendizes para as artes mais sombrias. E claro que precisávamos ser mais rápidos, por isso pedimos para a Srta. Sheridan te encontrasse. Só assim você conseguiria fugir das mãos do Frans.
- Escapista. - soltei.
- Exato. Mas por fim, vocês apostaram tudo no seu potencial - virou-se o olhar para o colar - e no seu pingente. - peguei-o na mão e ele entendeu minha pergunta antes que falasse - Cada um de nós possui um amuleto que canaliza nossos poderes. E você conseguiu se conectar completamente ao seu, e ele atendeu ao seu pedido.
- Então eu também sou um escapista? - apertei o pingente que não emitia o mesmo brilho.
- Pense melhor meu jovem Flash Hands. - então paramos diante uma porta toda polida que refletia nossas imagens. Aquele tom escuro contrastava com as paredes claras e a maçaneta dourada toda detalhada. No topo, havia algo escrito. Roy Fortski.
- Espero que você tenha uma ótima noite de descanso Steven. E que o conforto lhe agrade. - disse, voltando ao caminho pelo qual viemos. Parou - Mas antes de desfrutar de uma bela noite de sono, há uma lua linda lá fora. - sorri.
Assim que voltou a caminhar, girei a maçaneta e revelei um quarto que exala conforto. Uma cama de casal toda coberta com um dos tecidos mais macios que já havia tocado. Tapetes felpudos em lugares estratégicos. Espelhos que aparentavam muitos anos de existência devido a riqueza de detalhes. O banheiro possuía gravuras de enormes criaturas marinhas no seu dia-a-dia, imortalizadas em suas paredes. O vaso e a cuba eram de porcelanas tão brancas que ardiam os olhos. E a banheira parecia convidar qualquer um para horas de banho. Era como se estivesse brotando do chão. Possuía uma coloração rosada, era lisa com certos pontos ásperos. Já havia ouvido falar sobre isso, banheiras feitas a partir de um grande coral do fundo do mar. Realmente combinava com o mural das paredes.
Caminho até a janela, puxo as cortinas de seda e deixo a luz azulada do luar invadir o quarto. Como se eu estivesse sendo chamado, abri a janela, andei pela sacada e me sentei no guarda corpo de pedra. Pelas minhas contas, estava no terceiro andar.
Senti um calor por baixo da camisa e tirei o colar de dentro dela, que agora começava a reviver seu brilho de antes. Agora, as minúsculas estrelas formavam um pequeno desenho, no qual reconheci.
- Ursa menor. - balbucio - A minha preferida, está olhando por mim...
Então, como num lampejo, o pingente emite uma luz, me deixando cego, mas não de um jeito comum. Não me senti desconfortável, pelo contrário, me invadiu um enorme sentimento de calma, como se todos meus problemas e inseguranças tivessem sumido.
- Vejo muitas dúvidas... - soa uma suave voz ao meu lado.
- Quem está aí? - perguntei desesperado.
- Sua vida virou de cabeça para baixo, não é mesmo. Não julgo você por tanta confusão. - era uma voz feminina, delicada, sábia, que parecia me conhecer a ponto de saber o tom que me acalma. - O caminho será árduo, repleto de perigos, decepções, mortes... - sinto um toque acolhedor em minhas mãos - E muitas serão causadas por suas mãos.
Um frio sobe pela minha espinha.
- Você foi uma grande aquisição para o lado dos Duques. Seu potencial, junto ao seu coração puro e sua coragem ajudará e muito nessa guerra.
Sinto sua voz se afastar à medida que minha visão voltava ao normal.
- Dê o seu melhor e venceremos.
- Espere! Para onde você vai?
- E não se esqueça Steven. - ao som, percebi que a mulher estava a minha frente - Não confie nas pessoas, confie em você.
Assim ela se calou. Minha visão ainda turva, pude ver o contorno de longos cabelos prateados e brilhantes flutuando para cada vez mais longe e então desaparecendo numa nuvem de brilhantes.
Pisquei diversas vezes, até voltar a enxergar normalmente, remoendo ainda cada palavra dita. Olhei para o alto e encarei a lua, que pulsava como se sorrisse para mim. Abaixo os olhos para minhas mãos que seguram o pingente.
- Eu sou um ilusionista.
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A Trindade - O Segredo dos Amuletos
FantasySteven vê sua vida virar do avesso após acontecimentos estranhos em sua vida. Ele descobre, então, que não é apenas um jovem órfão morando nas ruas de Nova Iorque, mas sim que sua importância chama atenção de muitas pessoas, boas e ruins. Em quem co...