Já não sabia onde estava. Corria o máximo possível sem olhar para trás. O medo de estar perdido era menor do que ser pego por àquela figura sinistra que há pouco vi explodir o Sr. Mallark em uma enorme cortina de fumaça e cinzas.
Estava confuso. Não reconhecia quase nada daquele lugar. Quero dizer, em certos momentos eu tinha certeza de estar em Nova Iorque, mas em outros era como se tudo mudasse. Os prédios se tornavam ainda mais escuros, as ruas mais tortuosas, algumas pessoas pareciam nem perceber meu desespero, como se eu nem estivesse ali.
Sentia como se meu coração estivesse prestes a explodir. Adentrei sem pensar em uma fenda no emaranhado de prédios, me recostei ao lado de uma caçamba de lixo e enfim consegui respirar. Coloquei Copper, que parecia tão assustado quanto eu, sobre minhas pernas para me certificar que o mesmo estava livre de qualquer ferimento grave. Seus olhos me encararam.
- Está tudo bem agora Copper... Mas o Sr. Mallark... - alisei sua orelha.
Lembrei-me do colar. Retirei do bolso da jaqueta e vi que irradiava uma luz ainda mais forte que antes. Ainda mais lindo.
Em meio ao rebuliço de pensamentos e dúvidas na minha mente, não conseguia acreditar no que estava acontecendo. Até alguns minutos atrás era um dia como todos os outros, e agora estou aqui, fugindo de um urso de mais de dois metros de altura, por uma parte da cidade que inacreditavelmente eu não conheço, correndo o perigo de virar um amontoado de pó.
Copper fica alerta, encarando a saída do beco. Seu pêlo todo se arrepia.
- Amigão, o que você sentiu? - me aproximei.
Uma matilha de lobos surgiu, com seus focinhos próximos ao chão, farejando qualquer rastro de algo que talvez estivesse perto.
Congelei. Eu era a caça!
Agarrei Copper, tapando sua boca antes que fizesse qualquer barulho e me joguei na parede, ocultando minha presença atrás da enorme caçamba, torcendo para que não tenham nos visto, e que meu rastro seja disfarçado pelo forte cheiro do lugar.
Ouvi o farejar se aproximando de nós. A qualquer momento teríamos dezenas de dentes atacando nossas carnes...
- Vão. - disse a voz ríspida, assustando os lobos, que deram meia volta, até o homem. Era Frans.
Em um ligeiro olhar, pude ver pessoas passando tranquilamente por entre as feras, e o homenzarrão caminhando com determinação. Os animais pareciam nem se importar com os lanches gratuitos que perambulavam despreocupados por todos os lados.
"O quê?", pensei ao ver a cena.
Não podia ficar ali, esperando que os lobos sentissem novamente meu odor e viessem atras da presa.
Levantei-me, tomando cuidado com todos os lados. Olhei àquele pequeno objeto em meus dedos, que aparentemente possuía um significado ainda maior do que pensei. Prendi-o em meu pescoço e com um sinal dos dedos, chamei Copper.
Era um longo beco, escuro, repleto de latões, insetos, umidade e bares que poucos teriam coragem de entrar. Um lugar que causaria calafrios até nos piores bandidos. Eu que o diga.
...No meu desespero, só conseguia pensar em sair dali, encontrar de novo a cidade onde cresci.
Finalmente a luz voltou irradiar no final daquele labirinto. Um sopro de liberdade depois de tantas curvas que não davam lugar algum, obstáculos, animais mortos, caminhos sem saída e indivíduos mal encarados. Meus pés já aceleram automaticamente, rumo à esperança de me encontrar novamente com Nova Iorque, quando sou interrompido por algo. Uma risada.
- Eu não iria por aí se fosse você... - disse uma jovem. Estava encostada na parede ao meu lado, muito próxima a mim, já que o espaço ao todo não passava de um metro e vinte. Me surpreendi por não tê-la visto minutos antes. Ela parecia bem a vontade em meio aquele lugar. Usava um mini vestido preto, todo detalhado com spikes, que refletiam aquela luz preguiçosa da manhã, e algumas rendas estratégicas que enriqueciam o visual. - Seus amigos estão bem ali. - falou, encostando o salto na parede de tijolos, e apontando com a cabeça para um grupo de lobos e homens andando por entre as pessoas, enquanto cuidava das unhas.
- Certo, eu preciso sair daqui... - cochichei comigo mesmo.
- A não ser que você seja um escapista. - ela levantou os olhos para me encarar. Seu rosto quebrava totalmente a imagem de suas roupas. Era delicado, como se cada detalhe se encaixasse perfeitamente. Seus olhos azuis brilhavam como o luar, juntamente com seus cabelos loiros, presos com uma fita de seda vermelha, que dançavam em seus ombros nus. - Mas pelo jeito, você não é, então é bom começar rezar...
Fiquei apreensivo. Não tinha mais para onde fugir.
- Me desculpe, mas como... - comecei.
- Todos já estão sabendo de mais um escolhido... Pela sua expressão, ele é você. E pelo jeito já estão te perseguindo. - disse, sorrindo para Copper e parando o olhar no pingente do colar.
- Eu não tenho ideia do que está acontecendo! Estou muito confuso! - passei as mãos pelo cabelo. Avisto que a equipe de busca canina estava ficando desconfiada sobre nossa localização.
- O começo é sempre assim. - sorri. - Meu nome é Amy. - estende uma das mãos.
- Steven. - apertei-a.
- Acho que nos viram. - sorriu ela.
Amy apressou-se em me levar de volta para dentro do beco. Só pude ver Frans ordenando a matilha. Estávamos perdidos.
Copper já saltava por cima das latas e pedaços de escadas de incêndio que não levavam a lugar algum. O barulho das patas em pura adrenalina e as batidas de dentes ofegantes começavam se aproximar do beco.
- Para onde estamos indo? Vamos nos perder aqui dentro! - berrei, já nem medindo esforços para me esconder. Sabia que uma hora ou outra seríamos atacados por criaturas famintas.
- Eu sei o que estou fazendo Steven! Melhor confiar em mim. Ou talvez queira enfrentar aquele lobos fofinhos que estão atrás de você. - disse, entrando em uma curva ainda mais estreita. Era incrível como conseguia correr tão depressa e se manter firme ao mesmo tempo sobre àqueles saltos.
Refleti sobre o que havia dito. Soltei-me de suas mãos e juntos corremos, desviando e saltando diversos obstáculos.
Por um instante senti uma respiração quente e ofegante em meu pescoço. Assustado, virei a cabeça para olhar, e em um rápido reflexo, lancei o corpo para o lado, logo atrás de Amy, fazendo com que o enorme lobo, que a pouco não me abocanhou, acertasse em cheio um amontoado de canos de ferro.
Analisei a cena e percebi o aglomerado cinza, quase negro, se aproximar rápida e ferozmente de nós três. Os olhos vermelhos como sangue cintilavam com fúria.
- Eles são mais rápidos que pensei. - indaga Amy. - Por aqui! - ela me puxa pela manga da jaqueta e entramos em uma sala escura e minúscula, com uma escada caracol no centro, na qual não consegui avistar o final. Copper nos encontra, entrando com classe por uma micro janela ao lado da porta. Começamos subir correndo os degraus.
Logo, ouve-se lá embaixo a porta ser escancarada, diversas patas patinando no piso, chocando contra o aço da escada e um uivo, avisando que a caçada continua.
- Uma escada? Sério? - contestei. - Está certo que ganhamos mais tempo, mas uma hora ela vai acabar... E você sabe o que vai acontecer.Ela sorri.
- Ora Steven. Não seja pessimista. - gargalha. - Acho melhor você já ir se preparando. Tentando entender melhor esse amuleto. - aponta para o colar.
Puxei o pingente para fora da camisa, encarando-o, incomodado.
- Mas o que eu posso fazer...?
Ela não responde, somente me encara e sorri.
Continuamos subindo por vários minutos. Meu corpo já estava dolorido, um sinal de que as coisas não estão muito boas. Sentia que o som das patas se aproximavam cada vez mais. Logo estaríamos com baforadas quentes na nuca.
Começava acreditar que não estávamos em um prédio. Estava mais para uma torre, uma extensa torre, que parecia crescer a cada degrau, e se tornar cada vez mais escura e fria. Haviam pichações por todos os lados. Alguns símbolos me pareciam familiares, outros enigmáticos. Mas uma coisa era certa, não havia se quer uma janela, privando todo o lugar de luz e vida. Só conseguia enxergar os contornos das minhas mãos, os cabelos loiros dançantes da Amy e os pêlos lustrosos de Copper.
- O que está acontecendo? - soltei finalmente a pergunta que me angustiava.
- Steven... - suspirou. - Todas as respostas estão na noite. - a frase saiu como se perfurasse uma parte de mim. Realmente algo muito sério estava acontecendo, pois não era a primeira vez que ouvia essa frase. - Logo você entenderá.
Ficamos em silêncio por mais alguns minutos, embalados pelos batuques de aço vindos de todos os lados.
- Rápido! - disse, me puxando ao encontrarmos o fim da escada. Esmurrou uma porta a nossa frente, abrindo-a.
Estávamos no topo de um prédio. Eu era acostumado com altura, mas esse em especial me causava vertigem. Era estupidamente alto. Mas o que mais me chamou atenção foi que não havia mais aquele sol fresco da manhã. O céu já estava laranjado, e os últimos raios se despediam da população. Era fim de tarde.
- Mas como? Estamos aqui dentro só há alguns minutos! - gritei.
- Não há tempo para isso agora. - Amy já estava na extremidade do teto. - Eu explico depois. Agora venha até aqui, chegou sua hora. - assumiu um tom sério.
Fiquei paralisado.
- Esse é seu plano? Pularmos daqui de cima? - esbravejei.
A porta abre novamente num estrondo. A matilha me encara raivosa, como se me culpassem pelo cansaço que dei a eles. Os olhos me fulminavam a cada passo que davam em minha direção, lentamente.
- Steven...
Encarava fixamente, sem saber realmente o que fazer. Saltar não parecia mais uma péssima ideia.
Uma das feras corta por entre todos os outros. Possuía o dobro do tamanho, pêlos ainda mais escuros e garras ainda mais afiadas. Cerrando os dentes, aquele animal se desfez em fumaça, e dali, algo ainda maior se levantou, com um sorriso amarelo vitorioso.
- Surpresa. - diz.
- Fra-Frans? - gaguejo, incrédulo do que presenciei, dando passos para trás.
- Vamos garoto. Você já me deu trabalho demais por um dia. Entregue logo o colar e venha comigo. - disse, calmamente estendendo uma das mãos.
Pelo canto do olho avistei Amy apreensiva, segurando Copper em seus braços.
- Srta. Sheridan. - diz em tom de desgosto, mirando a jovem. - Sempre se intrometendo nos assuntos que não lhe dizem respeito.
Ela baixou os olhos. Dei mais alguns passos e Frans voltou a me fulminar com o olhar. Sentia algo queimar em meu peito, dizendo que não era certo confiar nele. Mas não era um sentimento, realmente algo estava quente por dentro da minha camisa.
Parei ao lado de Amy, encostando meu braço no seu. Era loucura, mas boa parte do meu pé se encontrava fora do prédio.
Analisando toda a cena, Frans deu um toque com sua bengala no chão, atiçando os lobos que começavam nos cercar.
- Não me dificulte isso rapaz... - uma das mãos começava assumir um tom avermelhado, liberando faíscas.
Algo sussurrava em minha mente, na mesma intensidade que o calor tomava conta do meu corpo.
"Você sabe o que fazer."
"Confie nos seus instintos."
"Você consegue."
Amy segurou minha mão, encaixando seus dedos aos meus. Encontramos os olhares e pude ler em seus lábios "agora".
Respirei fundo, então Amy e eu nos jogamos de costas daquele prédio. A matilha atacou, se lançando lá de cima em nossa direção. Frans correu até o limite, liberando diversas esferas de fogo que por pouco não nos acertavam. O vento nos cortavam a medida que a velocidade aumentava gradativamente.
Agarrei com a outra mão o pingente, fechei os olhos, sentindo um forte calor, e implorei que algo acontecesse.
Em minha mente, por algum motivo, a única imagem era o corpo sem vida do meu pai.
E então, ali, nossos corpos se desmancharam em milhares de cartas de baralho, que foram levadas lentamente pelo vento, bailando ao som de lobos sendo explodidos em bolas de fogo e urros de raiva de Frans, ao cair da noite.
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A Trindade - O Segredo dos Amuletos
FantasíaSteven vê sua vida virar do avesso após acontecimentos estranhos em sua vida. Ele descobre, então, que não é apenas um jovem órfão morando nas ruas de Nova Iorque, mas sim que sua importância chama atenção de muitas pessoas, boas e ruins. Em quem co...