É noite e eu só consigo pensar em tudo que houve há poucas horas atrás. Olho minhas mãos, incrédulo do que pude fazer com elas, ou melhor, das coisas que saíram delas. Pássaros brilhantes? Explodindo lobos? Há alguns dias eu espantava pombos que bicavam as ponteiras dos meus cadarços.
Toc! Toc!
Meus olhos encaram a porta, torcendo para ser apenas imaginação. A última coisa que gostaria era de uma visita do Sr. Bartos, explicar cada detalhe da implacável batalha na biblioteca, sem falar do incômodo de ter a mente sendo vigiada.
Toc! Toc! Toc!
Certo. Tem alguém na porta. E se for o Rúbeo, provavelmente ele ouviu esse desabafo. Droga. Caminho até a porta, deslizo a mão pela maçaneta a ponto de encarar uma expressão tranquila que exibia um sorriso que zombava de algo.
- Juro não tentar ler sua mente - gargalhou Thomas - Atrapalho?
- N-Não. Entre.- abri a porta desajeitadamente - Como está a Alice?
- Dormindo, como não fazia há muito tempo. - suspira aliviado. Era estranho ver como Thomas parecia um jovem comum agora. Cabelo despenteado, uma camisa azul de botões e um shorts bege como pijama. Ele parecia ter tirado o peso de proteger sozinho sua irmã, desarmando sua armadura - Você tem pensamentos confusos Steven. Tentador não decifra-los. - ele sorriu.
Paralisei, evitando pensar em qualquer outra coisa e lutando para que meu corpo não entrasse no automático e falasse algo estúpido.
- Desculpe, eu preciso aprender controlar isso tudo. Parece que esses poderes têm vontade própria. Ainda mais por uma mente tão agitada. - ele caminhou envergonhado pela sacada e se sentou no guarda corpo, um dos meus lugares preferidos.
- Isso tudo é tão inacreditável, tão incrível. As vezes ainda acho que posso acordar na sacada de algum prédio e que nada passou de um sonho. - digo.
- Sabe, a maioria daqui cresceu aprendendo tudo sobre mágica e essa realidade em que vivemos. Mas você, Steven, vivendo sozinho tantos anos, e ainda descobriu coisas sobre sua vida da pior maneira. - indaga ele, olhando fixamente para o céu. Meu coração dispara a cada palavra, pensando em como ele poderia saber de tudo - Ah! Eu não devia ter comentado sobre isso. Sua história é o assunto do Instituto no momento.
- Tudo bem. - me encorajo, sorrindo para ele - Ser sozinho todo esse tempo só me fez querer ser o melhor a cada dia, tentar ser a pessoa que meu pai gostaria que eu fosse. - sinto um ardor queimar meus olhos.
- Tenho certeza de que ele está orgulhoso, onde estiver. - Thomas coloca a mão no meu ombro, me confortando, como há muito tempo não sentia - Você não tem nenhum outro parente?
- Segundo meu pai, minha mãe morreu quando nasci e os pais dela não quiseram assumir esse "problema". - sorrio - Uma família tradicional.
- Eu sinto muito... - gagueja, assumindo o olhar de piedade que recebi a vida toda.
- Não se preocupe, esse assunto já não me afeta mais. Mas e vocês? Qual a sua história Thomas? - dou um leve soco no seu braço.
- Meus pais nunca foram presentes. Trabalham para o governo. Sargentos da primeira armada de batalha do presidente. - ele gesticula, zombando do enorme título dos pais - Alice e eu vivíamos passando de parente em parente, mas uma família militar é extremamente rígida e fria. Nunca nos sentimos bem-vindos por eles, somente aquele sentimento de ser mais uma obrigação. - ele desanima - Estávamos na casa de alguns tios, mas em um ataque de fúria, resolvi fugir, procurar algum lugar melhor para nós dois. Eu devo proteção para minha irmã, e o amor que eu nunca tive. - ele seca as lágrimas que ameaçam escapar.
- Mas eles sabem que vocês estão aqui?
- Sabem. - ele concorda - Assim que chegamos o Sr. Bartos informou a eles. Eu ouvi o sermão de sempre da minha mãe e meu pai dizendo que eu deveria entrar para a academia militar.
Nós suspiramos e sorrimos, concordando que as experiências familiares de ambos são frustrantes.
- Sabe, você e a Amy foram os primeiros rostos confiáveis desde muito tempo. Se não fossem vocês, eu não consigo nem imaginar... - ele sorri - Apesar de toda essa experiência ter me dado essa belezinha - mexe em um brilhante anel de prata, com uma pedra vermelha bem lapidada no meio -, eu ainda me sinto culpado por Alice já ter consequido seu amuleto. - eu o encaro, convidando-o a desabafar tudo que precisar - Ter um amuleto mágico é uma grande responsabilidade. A última coisa que eu queria era que ela perdesse sua infância livre para ter que aprender a lidar com seus poderes.
- Você é um irmão maravilhoso Thomas. Eu duvido que a Alice te culparia por algo. - coloco minha mão em seu ombro, seus olhos se encharcaram novamente e antes que pudesse conter, uma lágrima percorreu rapidamente sua face, contornando o sorriso de gratidão que ele emitia.
- Bom, acho que merecemos dormir depois de um dia desses. - desce da sacada, enxugando o rosto.
- Eu tenho a sensação de que dias assim irão se repetir de agora em diante. - digo, acompanhando-o até a porta.
Antes de sair, Thomas admira o nome da porta com certa expressão de dúvida.
- Fortski... Esse sobrenome não me é estranho...
- Bom, guarde ele como um terapeuta agora. - dou risada - Sempre que quiser conversar, minha sacada estará aberta.
- Na verdade, eu vim até aqui por outro motivo. - e em um rápido movimento, o rapaz me prendeu num abraço forte e reconfortante, me fazendo sentir assustado e tranquilo, com uma onda de pureza me percorrendo - Muito obrigado Steven. Eu não tenho palavras para agradecer por tudo que aconteceu. Você arriscou sua vida para nos salvar. - ele me apertava a cada palavra, me deixando sem fala, só pude retribuir o abraço, lembrando do quanto me senti aliviado no momento em que Thomas nos salvou da incineração iminente. Percebi que eu também havia muito o que agradecer.
- Thomas, eu... Obrigado.
Sem mais o que dizer, nós dois nos soltamos, estendemos as mãos aceitando um novo laço de amizade que nascera. Nos despedimos e mergulhei no emaranhado das cobertas. Ali eu deixei o dia e suas aventuras para o passado.
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A Trindade - O Segredo dos Amuletos
FantasySteven vê sua vida virar do avesso após acontecimentos estranhos em sua vida. Ele descobre, então, que não é apenas um jovem órfão morando nas ruas de Nova Iorque, mas sim que sua importância chama atenção de muitas pessoas, boas e ruins. Em quem co...