Fotos

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Fotos: Arquivos, artefatos, capturas de momentos; de lugares. Gravuras em papéis sobre momentos felizes ou...

A maçaneta rodou e estalou quando sua chave acabou de dar os seus 360°graus. A brisa morna de fim de tarde juntamente com os últimos feches de luz solar entravam pela janela de seu quarto, onde Constantine deixara aberta propositalmente. Ela pegara dois gatos de rua que estavam embaixo de um pontilhao do bairro em que morava enquanto voltava do trabalho. Celina, sua unica tia viva que conhecera depois da morte de sua mãe,  aprovou de todo o resgate dos felinos pois até então eram suas únicas companhias além de Constantine e a coleção de Whiskys caros sobre o grande balcão de mármore na cozinha. Ela bebia constantemente, passava as últimas horas da tarde de todos os dias dos 19 anos de Constantine  fodendo sua garganta com os russos. Importava de não sei onde e sabe-se lá com quem, todo fim de mês, caixas lacradas de seu bebê da Rússia. Uma fortuna em forma de álcool, pensara Constantine. E indo mais além, quando dava na telha, saia sem rumo e sem hora para voltar. Fugia. Fugia dos fatos, dos pesadelos e do fardo que carregava há 19 anos. Deixava apenas um mísero bilhete. O mesmo mísero bilhete todos os dias para que Constantine não ficasse preocupada e não saísse a sua procura.

Não me espere. Fui visitar um velho amigo. Celina.

- Coitadinha... Se soubesse da verdade. Não aguentaria, ahh com toda a certeza ficaria louca igual a mãe. Pobre Sofia, se estivesse me escutado...

Saiu porta a fora com uma bolsa relativamente grande. Haveria muito a resolver todo o resto do dia.

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A casa estava vazia. O bilhete em cima da mesa. Os felinos ronronando em torno de suas pernas. Doce rotina, pensara Constantine quando não encontrou nada além do comum.

- Venham cá, mal-criadinhos da Tine.. Titia Celina saiu mais uma vez sem dar ração para vocês!

Pegou o recipiente que continha a ração e o despejou sobre os pratos da CatCut que sua tia Celina comprara com muito amor ainda no primeiro dia em que viu os felinos. Pensou em como sua tia poderia se sentir sozinha quando ela saía para trabalhar, mas prometera recompensar-lhe da melhor maneira possível pois, se não fosse Celina, Constantine provavelmente estaria a mercê das ruas. Mendigando. Ou matando. Uma voz obscura soou grave em uma parte de seu consciente e Constantine a afastou com um riso abafado e descrente. Cansaço faz qualquer um ficar louco, pensou. Sobre o silêncio da casa, jogou sua jaqueta sobre a cômoda escura do quarto e se dirigiu para o banho. Precisaria de pelo menos umas duas horas para esvair todo o cansaço. Físico e mental. Ou uma vida toda, parte de Constantine acreditava na última opção.

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Durante o banho, Constantine tinha sempre a mesma sensação de viver. Era quando ela podia com calma forçar sua mente a se lembrar de flashes do seu passado. Momentos que passara com sua mãe apareciam de relance e desapareciam como uma nuvem que se desintegra toda vez que faz chover. Os últimos instantes que Constantine guardava com nitidez era de um bolo de cereja, o seu preferido, e dos toques macios em seu cabelo enquanto ela se deliciava com seu grande pedaço do doce. A menina passeava com os dedos delicados nas voltas do cabelo como se quisesse refazer cada toque recebido naquele dia. Tentativas frustrantes. A água que jorrava em seu rosto decia como ácido em sua pele, como se estivesse arrancando cada célula de dor, mas ninguém tira da alma o que está no coração. Dor e raiva invadiram Constantine e todo vestígio de paz que sentira se esgotou. Era impossível pensar em sua mãe e não se lembrar dos vídeos brutais que recebera naquele dia em que voltara da escola. Sete anos se foram e Constantine se lembrava de todos os detalhes com uma precisão dolorosa pois sua mente a castigava toda vez em que quisesse se lembrar de sua mãe, trazendo para ela aquela visão medonha.

Seus pensamentos foram interrompidos quando escutou estalos vindo de fora. Repentinamente pensou que eram os felinos aprontando.

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Primeiro vieram as dúvidas: O quê?  Mas..alguém entrou aqui? Como?  Depois as respostas: Janela. Meu quarto. Quando saiu do banho, Constantine se deparou com uma sala revirada e um cheiro amadeirado no ar. Andou pelo lugar com cautela, se caso alguém estivesse na casa, estaria em seu quarto. Batimentos cardíacos acelerados. Mãos soando. Respiração ofegante como se tivesse corrido milhares de quilômetros. O calafrio percorreu suas costas quando parou na porta aberta de seu quarto. Constantine se virou e podia jurar que havia alguém ali. Em pânico, entrou correndo para o quarto e fechou a porta com força, trancando-a por dentro.

Quando se deu ao trabalho de raciocinar, observou o cômodo escuro. O quê se podia ver eram os lugares marcados pela luz da lua que entrara pela janela fechada. O pânico tomou conta quando viu algo se remexer debaixo da cama. Constantine estava imóvel quando ouviu os miados e os olhos brilhantes dos felinos, que por sinal estavam felizes de Constantine ser Constantine e não qualquer outra coisa. Suspirou. Quando atravessou o quarto para pega-los percebeu que pisara em algo macio e colante, quando descolou-o do pé reconheceu a flor mais linda que ja vira. Lótus. Como chegou até aqui?  Constantine percebeu que ainda não havia acendido as luzes e ao faze-lo sua respiração falhou.

Fotos de sua mãe que nunca vira antes estavam espalhadas pelo quarto inteiro. Ela era mais jovem e usava uma máscara que de longe não era possível reconhecer o que era. Constantine viu sua mãe em diferentes fases da vida, desde a adolescência até a maternidade. Percebeu que em todas as fotos em que ela estava grávida, havia um semblante frio e triste, como se estivesse sendo obrigada a fazer algo. Sofia era loira e alta, tinha traços delicados e os olhos eram o quê Constantine mais se lembrava pois, eram idênticos aos seus. Grandes e curiosos. Recolheu todas as fotos, uma por uma e pode observar que na maioria delas sua mãe estava acompanhada de um adolescente e de um homem que pareciam ser as mesmas pessoas. Pai?  Ela nunca iria saber, nunca vira seu pai antes e pelas histórias que tia Celina contava, ele as abandonou quando soube da gravidez.

O pulo de um dos felinos a assustou, tirando-a do transe de pensamentos. O gato estava incomodado em ficar trancado e Constantine destrancou a porta o deixando sair. Cheia de dúvidas e perguntas sem respostas, ela se viu ali, sozinha. Nunca se considerou uma boa menina, magoara várias pessoas que se importavam com ela. Suas amizades são contadas à dedos e seus amores...não existiam. Corações partidos. Era tudo o quê tinha. A desconfiança se tornou um elo acorrentado em suas pernas desde o dia em que recebera os vídeos. Castigo. E Constantine ainda não havia pecado nada que desejara pecar. Por fora era flor e por dentro, espinhos. Chegou a conclusão de quê merecia aquela dor. A ausência de sua mãe era um veneno que a matava quando se sentia sozinha e apercebendo-o, mergulhava naquilo como se fosse de fato morrer. Como se por um instante gostasse da dor que sentia.

Confusa e perdida em pensamentos, adormeceu ali mesmo no chão sem se lembrar do trabalho ao amanhecer e nem de sua tia Celina, que nunca estava ali para responder suas perguntas, como se a quisesse poupar de algo que Constantine não entendia.

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Vasos de lótus estavam espalhados por todo o lugar. A cabana abandonada exalava um cheiro de carne podre que fazia o estômago de Constantine se revirar e ao mesmo tempo querer provar. O gosto de ferrugem estava em sua boca. Não havia ninguém. Não via ninguém. Até que uma voz sibilou em seu ouvido

- Eu sabia que estava viva, minha pequena baby face.

Baby FaceWhere stories live. Discover now