"As cartas"
O velho acaba de escrever a última carta. Dobra-a e coloca-a no envelope, de seguida molha a ponta dos dedos no pequeno recipiente com água e passa-os para que a cola adira. Antes de o selar fica uns breves momentos a pensar no futuro, em como aquelas cartas só chegariam aos seus destinatários anos mais tarde. Observa a divisão onde se encontra, á primeira aparência parece um escritório normal. Existem 2 janelas cada uma com cortinados de um verde vivo, embora as paredes sejam de um vermelho sem vida, onde estão expostos inúmeros relógios e pequenos pedestais. Sobre o chão está uma carpete que ocupa todo o pavimento. Junto á porta, uma estante cheia de livros, cujas lombadas são grossas. Entre as duas janelas situa-se uma pequena secretária onde ele se encontra. Está sentado num cadeirão com a mesma tonalidade dos cortinados e diante de si, dispostas pela mesa, 4 cartas estão seladas e a 5ª encontra-se entre as suas mãos. Nesse momento, em que se preparava para aplicar o lacre, alguém bate a porta.- Quem é?
- Sou eu.
- Entra - e ao dizer isto a porta abre-se revelando assim uma jovem mulher alta com os cabelos pretos e olhos da mesma cor. Possui um corte profundo no braço esquerdo, ao que tudo indica que é recente. Mas a mulher parece não sentir dor, pois avança normalmente até junto do homem, cuja silhueta é agora recortada pelos raios do final da tarde.
- O Adam mandou-me vir buscar as encomendas. Já acabaste? Tenho que as levar, bem tu sabes...
E nisto, o velho homem termina a sua tarefa, e entrega os 5 envelopes à mulher.
- Eu vou contigo Lisa, de qualquer maneira, tudo vai depender destas cartas e não sirvo de nada aqui parado.
Pela primeira vez desde que entrara a mulher, que se chamava Lisa, olha o homem diante de si. Veste um pólo azul marinho com riscas brancas, um par de calças ganga e sapatilhas pretas. De estatura média mas tem o corpo em forma, sendo a única marca da sua idade visível a partir do rosto vincado com rugas. Nele observa os óculos redondos e o cabelo despenteado que lhe cai para os cansados olhos azul e a pequena cicatriz no pescoço mesmo por baixo de uma orelha.
Lisa parece ponderar durante uns instantes que parecem horas, mas acena com a cabeça em sinal de consentimento.
- Porque não podemos entregar já as cartas? Quanto mais cedo forem entregues, mais cedo o ciclo recomeça. - esta era a questão que andava a fervilhar a mulher há já muito tempo, se as cartas fossem entregues, os seus destinatários, iniciariam um novo ciclo e se assim fosse, tanto ela como o velho ou Adam, seu marido, poderiam finalmente descansar.
- Minha querida - a voz do homem denotava compreensão, aquela fora a pergunta que ele e Adam haviam discutido nessa mesma manhã - a razão pela qual não podem ser já enviadas é porque os 5 - e fez questão de realçar "5"- Bem, eles ainda não estão preparados. Bem... Como hei de dizer isto? Eles... Eles ainda são crianças.
Seguiu-se uma longa pausa, tanto Lisa como o velho permaneceram calados. O som dos pássaros lá fora a chilrear era tudo o que conseguiam ouvir. Foi a mulher quem rasgou o silêncio:
- Mas crianças como? Liam, não podem ser crianças! Sabes tão bem como eu que nunca o conseguirão...
Passámos a nossa vida toda e não o conseguimos quanto mais crianças!
- Vão ser os últimos 5, e á medida que a idade passa vão enfraquecendo, por isso é que desta vez foram escolhidos mesmo antes de nascerem. - o velho Liam respondera calmamente, pensando bem nas palavras para que a mulher não fizesse mais perguntas.
Porém tal não aconteceu pois Lisa perguntou de novo:
- Sendo ainda crianças como se vão encontrar? No futuro quero eu dizer. As marcas já estarão concluídas nessa altura?
- Não sei. Talvez sim talvez não, talvez uma ou duas, ou então nenhuma. Em todo o caso tens que tentar juntá-los. Eu ajudava-te, mas com a minha idade já não devo durar muito. De qualquer forma -e fez uma pausa enquanto limpava os óculos com o pólo - Não deve ser muito difícil, eles encontrar-se-ão sozinhos mas não sabemos o que poderá acontecer.
- Então certificar-me ei que se encontram. - determina por fim a rapariga cujo corte no braço começa a jorrar manchando assim a carpete.
Dito isto dirigem-se ambos para a porta, seguem pelo longo corredor ladeado de portas entreabertas e chegam a uma escadaria onde descem em direção a um enorme átrio. Aqui deparam-se com o pôr-do-sol que atravessa as sacadas de vidro e lhes cega a vista, obrigando-os a colocar a mão sobre a testa. Atravessam-no e chegam ao exterior. O olhar de ambos é desviado para a imensidão de vegetação que os rodeia. Flores de todos os tipos e cores formam desenhos de animais na relva. Pinheiros e sequóias envolvem a propriedade onde se encontram. Uma estreita estrada de terra batida e algumas ervas daninhas dá acesso a um portão verde que está aberto, mas que parece extremamente pequeno tal é a distância a que se encontram dele.
Estacionada a frente da entrada, uma carrinha branca aguarda a entrada dos seus passageiros. Lisa entra e senta-se no lugar do condutor metendo imediatamente os envelopes no porta luvas. Estranhamente o sangue estancou, só restando agora linhas vermelhas de sangue seco que lhe envolvem o membro esquerdo.
Liam, que se preparava já para entrar na carrinha vira-se como para se despedir da casa. Vê a fachada, bem como as varandas e a trepadeira que por muito que seja cortada teima sempre em voltar a crescer. Os seus olhos fixam-se numa sombra da janela do 1 andar. Observa com atenção, estudando cada milímetro da sombra. Demora um pouco de tempo a ligar a janela ao escritório onde minutos antes escrevia as cartas. Um enorme medo se abateu sobre ele. Sabia que não era a sombra dos cortinados. Aquilo só podia significar uma coisa... E com isso corria risco de vida. Disso não tinha dúvidas. Podia morrer, mas isso não lhe importava, desde que as cartas fossem entregues ao Adam. Num movimento calmo e o mais natural que conseguiu sussurra a Lisa:
- Tens que ir sem mim, leva-as agora. Vai!
- Mas não vens porquê? Ainda agora lá em cima disses-te que não ficavas cá a fazer nada.
- Leva-as. Eu tenho que ficar. Eles chegaram - e sem ser preciso fazer referência a quem se referia com "eles" Lisa adota uma expressão sombria e arranca a carrinha a toda velocidade soltando pequenas pedritas que agora voam em todas as direções e deixando uma nuvem de pó para trás.
Ciente das consequências das suas palavras, o homem entra no átrio vislumbra a sua sombra no chão branco de mármore. Sobe as escadas e percorre o mesmo corredor que havia percorrido com Lisa momentos antes. Para ele era estranho percorrer tudo aquilo de novo sabendo que podia ser um dos últimos momentos da sua vida. Ao chegar ao fim deste mesmo, está diante da porta do escritório, um misto de medo e inquietação, fazem-no tremer. Inspira fundo e prepara-se para agarrar a maçaneta, é então que repara que por baixo da maçaneta,como em todas as portas, existe uma fechadura. Já vivia há 30 anos naquela casa e nunca encontrara aquela chave, nem aquela nem nenhuma das chaves das portas de dentro. Pensou para si próprio que teria gostado de descobrir o sítio onde todas elas estavam escondidas. E com este pensamento entra no escritório observando agora o dono da sombra.
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os últimos 5
FantasiClare era uma raparia normal, acordava, ia a escola, estudava... Quando conhece Jake numa visão percebe que afinal a sua realidade vai para além do que sempre acreditou. Ela tem a marca, algo com que já nasceu, mas sempre desconheceu. Se quer perma...