CAPÍTULO 2

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O quarto escuro havia se tornado o meu lugar favorito nos dias que se seguiram. Eu tinha pedido para mamãe tirar todas as fotos, troféus, bonecas que pudessem me fazer lembrar daquilo que era a minha maior paixão. Eu me recusava a ver qualquer pessoa que não fossem aquelas quatro que eu era realmente obrigada a ver: meu pai, minha mãe, meu fisioterapeuta e a psicóloga (que tinha um dom em especial que era me irritar. Ela achava que podia fazer conclusões óbvias para tudo o que eu estava sentindo. Como se ter dez anos de idade e não poder andar tivessem me tornado, de alguma maneira, uma idiota). Os outros insistiam em me visitar, em ligar para saber como eu estava, mas como eu poderia estar? O que eu poderia falar para eles, ou o que eles poderiam me dizer que eu ainda não tivesse ouvido outras dezenas de vezes de todas as pessoas empenhadas em tentar, inutilmente, melhorar a minha vida? Os presentes, cartas e cartões se acumulavam em um canto do quarto, onde minha mãe tinha esperança que eles fizessem com que eu me sentisse mais feliz, como se isso fosse possível.

Eu me sentia mal sempre que via minha mãe chorando, ou os ouvia discutindo, porque eu sabia que estava tornando a vida deles mais difícil, mas não havia nada o que eu pudesse fazer para mudar aquela situação.

O fisioterapeuta me visitava três vezes por semana. Mas as visitas da psicóloga que eram verdadeiramente torturantes. Não só porque eu precisava sair de casa em uma cadeira de rodas e ver todas aquelas pessoas felizes pelo caminho, vivendo suas vidas alegremente, enquanto eu estava ali presa. A pior parte eram as conversas. As conversas com Doutora Laura eram longas e torturantes, não sei como ela pensava que podia ajudar alguém. Mas apesar de todos os meus esforços e protestos, eu não podia me livrar dela. "Ela faz bem pra você", era o que os meus pais diziam. Eles estavam completamente errados, bem me faria poder colocar uma sapatilha novamente e deixar que o meu corpo fosse guiado pelo som da música, as conversas com ela eram perda de tempo.

•••

— Sua mãe disse que você se recusa a ver sua família e seus amigos. – Por um instante senti raiva da minha mãe por ela ser uma tremenda fofoqueira. O que aquela mulher tinha a ver se eu não queria ver meus antigos colegas da companhia de balé, meus vizinhos, colegas de escola, familiares, Tia Lídia e nem mesmo Cecília. Minha vida já não era torturante demais para ter que dividir com todas aquelas pessoas? E agora ela ficaria me questionando a respeito disso também.

— É verdade, eu não quero. – afirmei, tentando acabar logo com aquele assunto.

— E você não acha que isso seria bom para você?

— Sinceramente, não. – ela me olhou assustado por cerca de um segundo antes de voltar a me encarar com aquela expressão sorridente no rosto, como se entendesse tudo o que eu estava sentindo, outra pessoa talvez não tivesse percebido a feição assustada dela antes que ela a tivesse substituído, mas eu tinha.

— Bem, Ali, na verdade, eu acho que sim.

— Primeiro, a senhora perguntou o que eu achava. E depois, meu nome é Alice.

— Você não gosta quando te chamam de Ali?

— Meu nome é Alice. – insisti.

— Pensei que Ali fosse seu apelido.

— Mas não é. – se a intenção dela era me irritar completamente, ela estava de parabéns, porque com certeza estava conseguindo. — Ninguém me chama assim.

— Pensei que a sua melhor amiga te chamasse assim. – Demorei a perceber o rumo que aquela conversa estava tomando e ela tinha conseguido me levar exatamente ao ponto que ela queria, pude perceber isso pelo sorriso vitorioso que ela colocou no rosto.

— Não tenho nenhuma melhor amiga. – me defendi.

— E Cecília? – Como ela era insistente.

— O que tem Cecília? Ela é minha prima.

— Pensei que vocês fossem melhores amigas além de serem primas.

— A senhora pensa muitas coisas. – ela riu, como se eu tivesse contado alguma piada, mas eu não tinha.

— Mas me conta sobre ela, ela é sua melhor amiga?

— Eu não quero falar sobre isso.

— Tudo bem, Ali.

— Meu-nome-é-A-li-ce. – eu silabei. — Por que você gosta de me irritar?

— Oh, querida, eu não gosto de te irritar. Mas se você ficar irritada faz parte do processo para eu te ajudar, eu não me importo que você fique irritada comigo.

— Eu quero ir embora.

— Ainda precisamos conversar mais um pouco. – ela insistiu. — Você fugir das minhas perguntar não vai ajudar.

— Do que você quer falar então? – bufei.

— Cecília. – O sorriso vitorioso mais uma vez. Balancei a cabeça a dando espaço para prosseguir. — Por que você não quer mais vê-la se vocês eram tão próximas?

— O problema não é com a Cecília, na verdade eu não quero ver ninguém. Não quero que as pessoas sintam pena de mim.

— Sua família te ama, Alice. Ninguém sente pena de você.

— Eu sentiria pena de mim, se eu fosse outra pessoa.

— Então o problema é com eles ou com você? – ela insistiu.

— É claro que é comigo, doutora! Sou a menina da cadeira de rodas, esqueceu? – O sorriso dela não desapareceu.

— Você não acha que ela sente a sua falta?

— Quem?

— Cecília.

— Talvez ela sinta, mas ela tem outros amigos além de mim.

— Eles não são você. – Como se isso fosse uma coisa muito especial.

— No dia do seu acidente, Cecília estava lá, não estava?

— Sim. – respondi seca. Eu estava de olhos fechados, tudo o que eu queria era que aquilo terminasse logo, mas ela parecia sentir prazer em me torturar.

— Se Cecília não estivesse lá, talvez tudo estivesse normal, você não acha?

— Você acha que eu a culpo pelo que aconteceu? – eu não consegui evitar uma risada. — Doutora, a culpa foi minha e de mais ninguém. Eu não fui esperta o suficiente para olhar antes de atravessar a rua correndo.

— Não é questão de inteligência, Alice, acidentes acontecem.

— Tudo bem, doutora! – insisti. As lágrimas começaram a cair antes que eu pudesse impedi-las.

— Vai ficar tudo bem, Alice. Todos nós queremos te ajudar.

— Ninguém pode me ajudar. – falei em meio ao choro.

— Nem Cecília?

— Você acha mesmo que Cecília quer me ajudar em alguma coisa? Ela é linda, perfeita, tem dezenas de amigos. Cecília é bailarina. – Aí estava o grande ponto da questão, e percebi isso assim que cuspi as palavras que me pareceram um soco no estômago, mas ao mesmo tempo me deram um alivio tão grande, que eu chorava descontroladamente. — Me deixa ir embora, por favor.

— Tudo bem. – ela disse enquanto acariciava o meu braço.



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