O COMEÇO DO FIM: SOB A TRILHA ENEVOADA.

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CAPÍTULO 1

          — Claire! — Meu pai batia na porta incansavelmente, a ponto de arrombá-la. Levantei a cabeça do travesseiro encharcado com a minha baba e esfreguei os olhos. Empurrei as cobertas para longe do meu corpo e me arrastei até a sala, onde certamente encontraria o responsável por toda aquela barulheira. Desse jeito acabaríamos no olho da rua... de novo. — Vamos, Claire! Abra logo essa droga!

          — Já estou indo. — Murmurei sonolenta. Podia sentir os solavancos violentos da madeira contra a minha mão pequena quando destranquei a porta e puxei a maçaneta, abrindo-a. A camisola fina e abarrotada deixava perceptível o contorno dos meus seios ainda em botão. Eu não deveria ter mais que dezessete anos nessa época, e tudo no meu corpo - desde os cabelos dourados até as unhas do meu pé - costumava gritar "cuidado, eu sou frágil". O passado é uma coisa engraçada, não é? Justo quando quero esquecê-lo, sou obrigada a revivê-lo escrevendo-o num diário. Patético.

          — Mas que história é essa de que você passou a noite de ontem com o filho da senhora Fitzenberg?! Eu pensei que você estivesse com uma de suas amigas! — Papai gritava à todos pulmões enquanto enfiava as mãos no coldre da calça, tirando de seu uniforme de guarda noturno uma pistola carregada. Se ele me conhecesse o suficiente saberia que eu não tenho amigas. Mas, afinal de contas, quem havia contado? Ah, é claro, as velhas infelizes da cidade. Como não pensei nisso antes? Desgraçadas. - Eu vou lhe dar três segundos, ouça bem, três segundos para me convencer a não atirar em você agora mesmo!

          — Papai, eu estudo com a irmã dele, tínhamos trabalho escolar pra fazer. Eu só fiquei até mais tarde porque a mãe deles insistiu. Abaixa isso, por favor, o senhor está bêbado! — Ergui as mãos em rendição; minhas pernas bambeavam, temia pela minha vida. Coisa que jamais deveria ter feito. Muito pelo contrário, deveria ter admitido que só por uma noite havia deixado o medo e a miséria abandonarem a minha alma. Que foi bom ter o calor do corpo de Tristan consolando o meu, que minha espinha se encheu de doces calafrios ao sentir o toque de seus lábios no meu colo. Sim, estes mesmos seios pequenos e ainda em formação. Ele os adorava. Que desgraça eu deveria ser! Ah, quão envergonhada eu deveria me sentir! Não. Não mais. Eu não tinha nada a perder, nenhuma perspectiva de vida e nada que pudesse me redimir. Mas mesmo assim, eu menti. — Não aconteceu nada demais. As pessoas desse lugar falam pelos cotovelos.

          — Mentirosa! Vagabunda! — Urrou, e o tapa que ele desferiu contra o meu rosto me fez cair no chão frio. — Eu deveria ter te matado há anos atrás! Antes de toda essa avalanche de merda ter nos afogado! Todos nós teríamos ficado bem com a sua mãe... Ela está num lugar muito melhor que esse agora!

          O forte cheiro de licor que vinha da boca do meu pai já estava irritando as minhas narinas. Tapei os meus ouvidos com ambas as mãos, fechando os olhos com afinco. Esperando pelo pior, pelo disparo da arma que finalmente tiraria a minha vida e espalharia pedaços do meu cérebro no piso. Mas este não veio. Ao invés disso, senti o pé daquele homem detestável bater contra o meu estômago, fazendo-me cuspir um pouco de sangue e o resto do meu jantar. Meu pai sempre ficava descontrolado quando chegava em casa, isso não era segredo para mais ninguém. Era normal que me batesse e me acordasse para lembrar o quão desprezível eu era para ele, ou para nossa mãe. Que eu fui a causa da morte dela, que eu deveria ter sido abortada quando o mesmo havia pedido. Que eu era nada além de um problema, o motivo de toda essa desgraça ter nos atingido, quando na verdade era eu quem ainda mantinha a casa de pé. Nessa época eu costumava acreditar que um demônio muito malvado o possuía todas as noites e o fazia violentar-me. Hoje eu sei que isso seria uma ofensa brutal até mesmo para Lúcifer.

Os Artefatos InfernaisOnde histórias criam vida. Descubra agora