A SERPENTE DO CASTELO NEGRO

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                                                                                 CAPÍTULO 4


          E foi assim que a minha jornada em direção ao inferno começou. Lá estava eu, no banco do carona de uma BMW novinha, enquanto Jerry dirigia e tagarelava ao meu lado. O demônio não parava de falar sobre o quanto eu havia sido maldosa naquele dia e como ele não poderia estar mais orgulhoso de mim. Não havia nada de grandioso em ser a responsável pela morte de três pessoas, por mais que uma delas tivesse merecido. Então permaneci calada durante a maior parte do trajeto. Era noite, e o brilho da lua cheia tinha um efeito assombroso nos cabelos platinados do motorista. Seus olhos pareciam dois faróis na escuridão, atentos e entusiasmados, um verde e o outro escarlate. Eu me perguntava há quanto tempo ele não via os seus camaradas do inferno.

          — Quatrocentos e noventa e um anos. — Ele respondeu de imediato, assustando-me. — E não chame a nossa casa de inferno, muito menos perto dos meus irmãos, você pode ofendê-los.

          — Consegue ler os meus pensamentos? — Eu perguntei, incrédula.

          Jerry deu de ombros, pegando um atalho à direita que nos levaria a um grande túnel.

          — Geralmente. Mas prefiro não fazê-lo, você me assusta às vezes.

          — Mas isso não é um pouco contraditório? Na catequese me disseram que apenas Deus sabe o que se passa dentro das nossas cabeças.

          — Oh, então você tem a coragem de admitir para um demônio que já foi à catequese?

          — Um par de vezes. A minha mãe era uma mulher extremamente religiosa. — Retruquei. Tinha o baralho da morte entre os dedos, estudava as cartas e as embaralhava conforme as decorava. Jerry me explicou que a maldição contida nelas só é efetiva quando as lia em voz alta. — E não tente mudar de assunto.

          — Sinceramente, Claire, eu achei que você fosse mais esperta que isso. — Ele reclamou, enfiando o carro no túnel. A iluminação ficou mais precária. Se não fosse por algumas luzes no teto de pedra curvilíneo, não conseguiria sequer enxergar um palmo diante do meu nariz. Mas o demônio parecia estar satisfeito com a repentina escuridão. Deveria estar acostumado. — A bíblia tem centenas de traduções e diferentes versões. Foi adulterada e tirada de contexto milhares de vezes. Não sei porque ainda tem gente que acredita nessa velharia. Está tudo mudado! Da última vez que eu dei uma olhada numa versão ocidental, por puro esporte, os homossexuais estavam proibidos! E pior ainda, proibiram o torresmo! Você já comeu torresmo? Ou uma costelinha de porco? É uma delícia! Não dá pra acreditar nessa merda.

          — Então isso significa que tanto anjos quanto demônios podem ler pensamentos humanos?

          — Não. Além de Yahweh, apenas membros da nobreza celestial são autorizados. Tais como serafins, querubins e arcanjos.

          Franzi o cenho, fitando o seu rosto de perfil. Reparando agora, não me lembrava de nenhum demônio patenteado com o nome Jerry.

          — E qual desses era você?

          O asfalto se abriu numa rampa para baixo, nas entranhas do chorume. O carro escorregou como uma flecha, deixando-se ser engolido pelo buraco. Agarrei-me às cartas para que não voassem. Ainda bem que eu estava usando cinto de segurança. Ele abriu um sorriso largo, carregado de escárnio.

          — Divirta-se tentando descobrir.

                                                                                            *****

Os Artefatos InfernaisOnde histórias criam vida. Descubra agora