Dias chuvosos são piores para trabalhar. As botas ficam sujas, a barra da calça fica molhada, não dá para aproveitar a roupa para o dia seguinte. João-pé-quente. Não dá para esquecer. 17h28min... parece que essa hora não passa. "Mais um café, 403. Champanhe, Fechar conta, 304". Melhor que entregar pizza. Não gosto de moto, prefiro bicicleta. Queixada, pisão, chão. Não deu tempo para pensar. "Sim, senhor, obrigado. Às suas ordens". Minha avó, que Deus a tenha, porque senão fosse a velha, eu não estava nessa. Todo o tempo ela dizia: "Tu tem que te defender Gilson. Tu não vai ser "pião". Tu vai fazer os outros rodá". Lembro como se fosse ontem. "Champanhe, senhor". A gente entra e sai sem ser visto, fala na direção da porta. Melhor assim, ambiente fechado. Num dô certo em lugar de frente para a rua. Aparece sempre alguém para invocar. E aí, eu não me seguro. Calma, não mexe aí não, não fui eu. Me solta. Minha mãe gritava, e eu no colo dela. Pequeno, chorava. Chorão, ela dizia, para de chorar, moleque. Além de me atrasar no trampo, ainda fica de bico. Um dia aquilo tinha que acabar. Eu olhava para ela, até que aprendi a não chorar. Pisão, chão, sangue, vista embaçada, cordão quebrado. Sem lágrimas. Eu olhei para ele como olhava para minha mãe. "Madame, a conta. Aceitamos todos os cartões de crédito". Mãe, me deixa em casa. Claro que não, imbecil, não vê que contigo no colo é mais fácil. Me deixa com a vó. Aquela velha não entende nada, e depois ela fica querendo me ver escrava de trabalho. Sai dessa. Os olhos do João, olhos de cobra. Cabeça prensada. As mãos de Maria no rosto. "American Express". Não gosto do pessoal que usa esse cartão. Normalmente são mais empombados. "Corre lá, negrinho, dá uma olhada no que está acontecendo na suíte". Eu? Que merda. E eu sou segurança? Sempre que o Jonas falta, é isso, lá vou eu me meter nas brigas dos outros. Dar uma de bom moço para não deixar quebrarem nada no quarto. Campainha, campainha. "O que é? Eu não pedi nada". "Eu sei, senhor, mas é que o patrão está preocupado com o barulho. Está tudo bem aí?" "Está tudo ótimo, meu filho. Pergunta para o seu patrão se ele nunca ouviu uma espanhola goza". Há! Há! Há!" Ainda essa, lá vai eu transmitir essas bostas de recados. A polícia veio. Uma roda de gente cercando, não deu para fugir. Minha mãe começou a gritar. E eu parei de chorar. O carro parou, dois homens saltaram para cima dela, um deu com o cacetete nas costas e o outro me puxou pro colo. Levaram minha mãe. Meus olhos estavam secos. "Olha só, senhor, está tudo bem lá dentro, é só bagunça de homem e mulher". "Tem certeza, negrinho?" "Bom, foi o que eles disseram. Sucos e lasanha, 201. E o cartão da dona?" Primeiro a janta, senão esfria. Uma roda que gira a tua vida, treze, a morte, carta que corta. Cuidado com faca! Maria é boa nas cartas. Juizado de menores, dois dias e acharam minha avó. Nunca mais vi minha mãe. "O pedido está na mesa, senhor". Caramba, o American Express da mulher. "Desculpe, senhora, mas tivemos um contratempo com dois clientes. A senhora quer outro café?" 20h40min. Frio na barriga. Pedi para Maria não ir. Hoje não. Medo de vê-la chorar. "Vai, menino, aprende direito, para se defender. E se a polícia chegar, corre porque eles têm arma, e tu tem teu corpo para cuidar, entendeu?" Negra forte, a minha avó. Viu a cara de cu que a gorda fez ? Num falei? American Express. Foda-se! "Já vou. Cadê o ponto? Tenho que assinar. Pô, para que vocês carregam para a portaria?" 21h10min, ainda tenho que pegar o bonde. Cabeça fria. Cabaça, verga, berimbau. Aperta o arame, amarra a corda. Corpo esticado. Medo. Mãe. Maria. Rostos, pés nus, branca, branco, negro, estrelas. João, eu. Facão bento por minha avó no seu leito de morte. Uma roda boa, animada, maculelê. Olhos nos olhos. Arpão. Pião. Ginga, ginga, ginga. Trovão, ventania. Para onde levaram minha mãe, vó? "Não pensa nisso menino, foi melhor pra você". "Qual o teu sonho, Gil?" Sonho, Maria só pensa em sonhar. Ela é tão meiga, sorriso largo. Doce ilusão. Jogo duro, farsa, fita. Como eu cheguei aqui? Som, atabaque. Maria!?! Ela disse que não vinha. Ai! Meu rosto, sangue. Sacana. "Para de chorar, moleque". "Vó, por que minha mãe não deixa eu chorar?" "Porque ela quer que tu seja ruim, filho". Sangue na boca, olhos secos. Mestre Estopim não brinca, luta. Facão, ponteira, relâmpago, gritaria, a música pede fim. Esse negro é ruim, pega ele, meu irmão, não deixa sair da roda sem passar por teu facão. Queixo, mão, pescoço. Foi. 'Macaquinho' me ajudou, o homem está no chão, é João-Sangue-Frio que escoa pelo chão. Chuva solta lá do céu para molhar tudo em vão, não há meios de limpar tanta amolação. Maria vem correndo e me pede compaixão. Chuva cai, lava rostos, esfria a caça para amanhã. "Olha a polícia! Corre! " Água rola mãe ladeira beira avó estrada bonde Maria mão. Meu facão tá manchado, rosto molhado, chuva. Lágrimas não!
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Café com Chantilly, contos de motel.
Short StoryCafé com Chantilly, contos de motel, é um livro onde ENCONTRO é a chave. Histórias se entrelaçam, fazendo com que personagens em suas questões individuais tenham suas vidas cruzadas num motel carioca. Encontros e desencontros de personas construídas...