Capítulo 1

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É tudo tão difícil, cada movimento.

Faz um longo período de tempo que não sei o significado de dormir uma noite completa. Na real durmo no máximo duas horas por noite, e depois fico esperando o tempo passar da maneira mais sorrateira possível. No dia seguinte. REPLAY.

Adoro observar a madrugada e ver como ela é sossegada e vazia. Gostaria de um pouco de sossego,para variar. Fico sentada na poltrona do meu quarto de frente á janela como estou agora, e ter a visão da rua, e do céu em um único plano, se as pessoas conseguem me ver eu já não sei, realmente espero que não. Quando faltam cinco para as seis e meia deito na cama e espero minha mãe vir me acordar e falo "só mais cinco minutos", como qualquer outra pessoa faz. Mas hoje a noite está demorando mais que o normal para acabar, talvez seja porque hoje eu não dormi ao menos dois minutos. Minha mente não para de borbulhar e reproduzir cenas aleatórias, nada conseguiria desliga-la, nem mesmo os remédios mais fortes, se isso acontecesse só pioraria a situação. Quando esses acessos de "controle de mente não autorizado" acontece a única coisa que tenho de fazer é esperar. A música me ajuda, música clássica, ou talvez Michael Jackson, mas só escuto música na minha vitrola, então, opção descartada.

Realmente esperar, tentar focar em alguma coisa que acontece na rua, na verdade pequenas singularidades de cada madrugada. É isso que mais me encanta, na madrugada as pessoas fazem coisas simples de maneiras diferentes, já no cotidiano de cada manhã, tarde e noite, as pessoas insistem em fazer coisas complicadas exatamente da mesma maneira, e ainda ousam reclamar quando caem na rotina. Patético.

Minhas pálpebras estão pesadas, meu corpo pede para que durma mas minha mente insiste em fazer exatamente o contrário. Não consigo ficar de olhos fechados, as cenas parecem tão vivas quanto no dia de sua estréia. Patético.

Tic-tac

Meu relógio me trás de volta para o meu quarto. E já são seis da manhã, já está começando a clarear. E cada vez mais as ruas vão se enchendo de pessoas fazendo exatamente as coisas que fazer todos os dias. Um suspiro para aliviar a tensão. Melhor levantar da poltrona. Com meus pés descalços sinto o chão frio e um calafrio sobe por todo meu corpo. Eu não tinha notado que estava suada, mas meu corpo gruda.

Cinco para seis. Deito na cama e aguardo com o coração palpitando minha mãe chegar e me mandar levantar. Tenho receio de que um dia ela descubra que não estou "instável" ela ficaria chateada, não comigo mas consigo mesma. Á conhecendo como conheço, ela acharia que tinha fracassado no seu papel de mãe...pela segunda vez. Mas sei que nada disso é culpa dela, apenas existe uma culpada, e ela sou eu. Estou aprendendo a viver com esse sentimento. É difícil, mas o ser humano é um animal totalmente adaptável, não é mesmo?

E aí está ela, com o pijama, fazendo o que tem fazer, como tem que fazer, sem nunca mudar, nem sequer um único dia.

-Filha, 6:30.

-Só mais cinco minutos-me faço de sonolenta tão bem quanto me faço de "adolescente convencional sem nada de especial para mostrar", não que isso não seja uma verdade, mas de qualquer maneira

-Não vá perder a hora, não quero que falte na escola.

-Ok, já vou levantar...

E a porta se fecha, espero trinta segundos e me levanto. É assim exatamente todos os dias, as mesmas frases as mesmas entonações de voz. Tomo um banho rápido para não ter tempo de haver crises existências e fico de frente para o espelho. Esse complexo eu não tenho, gosto do que vejo refletido naquele pedaço de vidro, olhos escuros, cabelos escuros, nada de mais nada de menos. Mesmo assim gosto do que vejo, o meu problema é com a parte que o espelho não pode refletir.

Minha escola só exige para que os alunos usem uma camiseta preta com o nome da escola do lado direito do peito, o que permite que os alunos exibam seus estilos no resto do look. Eu não ligo muito para isso, minha mente não disponibiliza muito espaço para eu pensar "em que roupa eu vou usar amanhã", normalmente uso uma calça jeans de lavagem escura, e um moletom com alguma estampa legal, um all star e estou pronta. Sem maquiagem e só penteio meu cabelo para não embaçar, mas quase sempre está preso em um rabo de cavalo alto por causa do calor, e hoje não é diferente. Pego minha mochila e meu livro e desço.

-Não vai tomar café filha?

-Não mãe,não estou com fome

-Você sempre fala isso... nunca te vejo comer e você sempre diz isso. Olha como está magra, e está emagrecendo em uma velocidade assustadora.

-Mãe, eu como sério, é porque estou a maior parte do tempo estudando no quanto por isso você não vê nada de mais. Não engordo de ruim, só isso.

-Vou te levar em um médico!

-Mãe estou bem,sério!Não se preocupa com isso. Tchau.

Tá,eu não venho me alimentando tão bem mas não é por negligência, simplesmente não sinto fome, em nenhum momento. Como de vez em quando um pão ou uma fruta para não desmaiar, mas fome eu já não sinto. Sério. Acho que tem algo profundamente errado nisso, mas procuro não dar muita importância, e minha mãe já tem muito para se preocupar. Vamos deixar como está.

Já é a terceira vez que leio O retrato de Dorian Gray minha história favorita e meu autor favorito, Oscar Wilde é espetacular, escrever sobre um retrato que espelha a maneira que sua alma está e deixa sua aparência física intacta de uma maneira genial, é para apenas um. É um ótimo livro para se ler em sala de aula. Alias, eu não estudo na escola, realmente não presto a mínima atenção no que os professores dizem, apenas gravo o nome do conteúdo e estudo em casa. E minha médias são sempre 9 e 10, eles não fazem ideia de como faço isso. Escola é um lugar irritante. Necessário,mas irritante. O que mais me irrita é julgar a capacidade de alguém através de nota, e de pequenas matérias. Não poder focar naquilo que fazemos bem e com prazer é irritante. Se cada um exercesse aquilo que melhor fizesse viveríamos em um paraíso.

Toda vez que chego na esquina da escola vejo um homem de vinte e poucos anos fumando. Sempre o mesmo estilo de roupa jaquetas jeans, camisa de bandas, calça preta e Vans. Mas existem duas coisas que me chamam a atenção nele: primeiro, a maneira como ele traga o cigarro, inspira com força como se fosse o último e solta a fumaça com tranquilidade e calma. Segundo, seu olhar. Ele olha o nada e ao mesmo para olha para tudo, como se analisasse todos a sua volta, mas nunca foca o olhar em algo ou alguém.

Sento na última cadeira na sala e começo a ler. Converso com todos da minha sala mas nunca nada muito pessoal, na verdade nada pessoal. no geral eles me pedem para ajuda-los em algum conteúdo e perguntam se estou bem. São legais, em outra época da minha vida teríamos sido amigos.

-Magnória,pode parar de ler e se concentrar na aula?- era a professora falando comigo para variar

-Claro sra. Suzane, desculpe- cinco minutos depois estava lendo novamente.

Os professores não podiam me proibir a leitura pois meu boletim era o melhor da sala. Não tinham como argumentar. Os alunos me dirigiam sorrisos encorajadores toda vez que um professor chamava minha atenção, e eu retribuía. Sempre ficava na sala na hora do tão esperado intervalo, não podia mas eu não tinha o que fazer no pátio, não como, não tenho o que conversar e odeio barulho. Barulho para uma mente turbulenta é a morte, ela não consegue se concentrar a fazer o seu dever que basicamente é atormentar. Os dias na escola passavam rápido, mais rápido que as noites não dormidas. Não disse, já é hora de ir embora

-Ei, Magnória! Amanhã você pode me ajudar em química?

-Claro Paolo, na hora do intervalo ok?

-Fechou! Tchau- retribuí com um aceno.

Hoje o homem do cigarro estava lá na hora da saída também, talvez as noites sem dormir estejam afetando o meu cérebro, mas pro uma fração de segundos vi ele focar seu olhar em mim. Na estampa da minha blusa, para ser mais exata.





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