Capítulo 16

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   Renata ficou me olhando esperando eu dizer algo. Eu também.
  Tentava encontrar as palavras para começar a falar mas nenhuma me parecia coerente. Eu ensaiava dizer algo mas as palavras me fugiam.
—Bom, que tal você me falar da sua infância?
   Franzi a testa e olhei para Renata. Falar da minha infância? Isso era meio incomum para mim e estranho também. Sei lá,  era só que... Eu não pensava mesmo nisso. Fora os flashback da minha cabeça- que eram involuntários para deixar claro- eu não pensava na infância.
   O silêncio na sala continuava mortífero... Mas, em compensação dentro de mim, estava acontecendo um barulho tremendo.
  Minha infância... Parecia algo tão distante.
— Eu costumava pintar em telas. Fazia muito bem. Gostava de arte. Ir à museus e bienais da arte...- de tempos em tempos parava a frase para colocar os pensamentos em ordem.
   Não era algo tão fácil falar sobre aquele tema, e muito menos natural.
— E o que mais?
  “E só”  era o que eu queria responder. Na verdade, eu não me lembrava de muita coisa mais e o pouco que lembrava queria esquecer. Mas estava ali para tentar certo?
— Eu... Eu brincava com minha irmã... Na verdade... Bem, na verdade ela sempre queria brincar comigo. Eu não gostava muito...- falei as últimas palavras rápido para que acabasse logo. Como se o quão mais rápido eu as dissesse mais rápido eu iria voltar à esquecer.
   Ou a fingir que esqueci.
— Qual era o nome da sua irmã?
— A gente foi nadar. Ela queria nadar eu não – falei não respondendo a pergunta que ela havia feito- Eu nunca queria fazer as coisas que ela queria. Então ela foi nadar. Eu disse que a mamãe não iria brigar..
    Estava acontecendo de novo. Eu só falava o que minha mante projetava. Eu não queria falar sobre aquilo, eu não queria pensar sobre aquilo. Mas naquela situação, eu nada podia fazer, era mais um dos meus “controles de mente não autorizados”
  As imagens passavam pela minha cabeça e eu falava e falava. Queria muito calar a boca, queria muito fazer com que as cenas da minha cabeça se paralisassem mas eu simplesmente não conseguia.
— Eu chamei ela, disse que mamãe não iria brigar. Ela entrou na água e disse “Olha irmã,  olha!! Olha como eu consigo ir fundo" ela ia e vinha, até que não voltou mais... Minha mãe chorava e chorava depois disso. O corpo dela nunca foi encontrado. Levado pela correnteza. Mamãe chorava e chorava.
   Minha respiração ficou densa, curta, difícil. O ar pesava toneladas e meus pulmões eram balanças de quilos.
  Eu não queria ter lembrado. Não, não queria.
—Você sente-se culpada Magnoria?
  — A parte mais egoísta de mim, diz que eu era apenas uma criança.. Mas, a parte sensata diz que a culpa foi única e exclusiva minha. Mamãe chorava chorava, chorava
  “Pare de falar.  Pare de falar. Pare de falar” Eu não parava.
— Se a culpa não for minha,  eu compactuei para que...
  Não terminei a frase. Ótimo. Consegui voltar a ter controle sobre mim.
  Aproveitei para me calar. Já tinha dito demais. Não queria ter dito nenhuma daquelas palavras. Estava preparada para dizer o que sentia e não de acontecimentos.
Agora, a imagem da minha irmã,  de vestido branco me chamando rodopiava por minha cabeça. Para lá e para cá,  me torturado. Ela sorria. E me chamava, e a única coisa que eu pensava era em voltar para casa e continuar pintando uma tela...
  Eu nunca cheguei à terminar aquela tela. Era uma flor. Sempre gostei muito de flores. Mas, sempre as desenhei opacas e quase mortas.
  Eu sempre disse que, não deveria dar flores à alguém em forma de amor. Porque, quando se arranca uma flor, você à mata para fazer alguém sorrir.
  — Eu que não tenho mais o que falar, por hoje – eu não estava olhando para Renata. Não queria ver seus olhos me analisando e suas mãos anotando algo em sua prancheta para que começasse a traçar um perfil sobre a “adolescente traumatizada”
   Não queria que fosse isso, até porque,  não era isso.
  Queria ir embora.  Aquela sala estava me deixando com sensação claustrofóbica.
— Semana que vem nós nos vemos...
  Me levantei tentando sorrir, o que,  para variar não deu muito certo. Saí da sala, e logo minha mãe se levantou, perguntou qualquer coisa sobre não ter de falar com a psicóloga. Não lembro de ter respondido, mas eu sentia uma necessidade de sair dali, avassaladora.
   O caminho inteiro de volta eu fui pensando em como seria meu diagnóstico,  quando ele ficasse pronto. 
  Iria ser “Trauma de infância." Mas a questão fundamental é que não era isso. Pode-se dizer que a morte de minha irmã abriu as portas para que a dor se instalasse em mim, mas não pode-se dizer que ela fazia sala para que a dor ficasse.
  Eu não chorava por causa dela. Não mais. Eu chorava por causa de mim. Eu sofria por causa de mim.
  Me irrita as pessoas querem rotular a dor, o sofrimento das pessoas, como se, pra tudo houvesse uma explicação,  quando na verdade não há.
  Quando você deita a cabeça no travesseiro e não tem sono. Quando você se sente sozinha e incompreendida, quando você sente uma dor avassaladora invadir seu peito, impossibilitando o ar de chegar aos seus pulmões. Quando isso acontece com você, você não pode colocar rótulo.  Porque é algo inexplicável. Que você jamais vai entender se não passar por isso.
  Eu não julgo aqueles que acham sem sentido, ou até,  um certo drama, quando alguém fala para ele o que sente.
  Não é fácil imaginar uma dor sem precedentes, sem nenhum motivo explicável. Eu só queria que as pessoas não julgassem... Eu só queria que as pessoas não julgassem uma realidade que elas não vivem.
  Quando cheguei em casa, era quase sete horas da noite.  O dia ainda estava quente, mas agora, um quente agradável.
   Nem cheguei a entrar em casa, me sentei na calçada e fiquei vendo o movimento,  como em alguns dias antes.
   Quando finalmente o Sol  se pôs e a noite tomou conta de todo o céu. Minha mãe acendeu a luz do quintal, para que eu pudesse ficar um pouco mais “confortável”
   Aquele clima era realmente nostálgico. Lembrava-me das minhas antigas férias, quando ficava até tarde pintando telas.
  A rua estava calma,  com carros passando de quando em quando.  E algumas poucas pessoas passando na calçada.
  Avistei Diego passando do outro lado da calçada. Ele trazia uma guitarra vermelha na mão esquerda. Ele lançou seu olhar vago para minha casa e atravessou a rua.
— Oi Mag! Vim ver como você está- ele não olhava para mim. E eu já estava habituada com aquilo. Ele se sentou do meu lado e olhava para frente. Assim como eu.
— Eu estou bem. Sempre estou. – A última parte falei tão baixo que julgava que ele não havia escutado.
— Ok; vou ter isso como um não. Você ouviu algum dos CD's? 
  Diego colocou a guitarra no chão e tirou o maço de cigarro do bolço junto com um isqueiro. Colocou um cigarro na boca e o acendeu. Dando a tragada profunda como sempre fazia.
Ele olhava para o nada, e eu olhava para ele.
— Porque me olha tanto?
Eu sorri, ele também. Ou quase. Diego nunca foi muito de sorrir...
— Toca guitarra é? 
— Talvez. Tiro algumas notas meio desafinadas. Nada de mais- Eu sempre achei incrível o fato dele ser tão quieto. Sempre ficava um longo período na mesma posição. Com seu olhar vago, posicionado em tudo e em nada ao mesmo tempo.
    O céu estava estrelado. E vi, com o canto do olho Diego jogar para fora a fumaça que estava em sua boca e tragar mais uma vez o cigarro.
   Do final da rua vi um garoto, acenando em minha direção. Cerrei os olhos e reconheci Thomas.
  Ele estava com o cabelo solto, com uma mecha caído em sei rosto, e,  apesar do calor que fazia ele estava com uma blusa de manga comprida.
  Trazia seu violão em mãos e caminhava com inquietude. Sorri ao pensar na diferença de meus dois amigos.
  Amigos.
   Essa palavra ainda era estranha para mim
— Oi Diego.
— Thomas.- Diego fez um gesto com a cabeça.
— Vocês se conhecem?- perguntei surpresa
— Claro Mag. Você não acha que seria muita acaso? Ora! Você acha que é uma personagem de livro para ter o Destino estar tão do seu lado assim é?
  Eu sorri mostrando os dentes e vi Diego esboçar um pequeno e rápido sorriso,  quando Thomas sentava aos meu lado.

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