Capítulo Onze
Tinha-se passado apenas um dia desde a conversa de Anne com a Sra. Smith; mas umassunto de maior interesse tinha surgido, e a conduta do Sr. Elliot afetava-a tão pouco agora,exceto pelos seus efeitos num determinado sentido, que lhe pareceu normal, na manhã seguinte,adiar a visita explanatória a Rivers Street. Ela prometera estar com os Musgrove desde o pequeno-113almoço até ao almoço. Empenhara a sua palavra, e o caráter do Sr. Elliot, tal como a cabeça dasultana Scheherezade, viveria mais um dia.Mas ela não conseguiu chegar pontualmente ao seu encontro; o tempo estava desagradável, eAnne ficara aborrecida com a chuva por causa da amiga e aborreceu-se ainda por causa de siprópria, antes de conseguir pôr-se a caminho. Quando chegou ao Veado Branco e se dirigiu aoapartamento certo, descobriu que nem chegara a tempo nem fora a primeira a chegar.O grupo que chegara antes de si era composto pela Sra. Musgrove, que conversava com aSra. Croft, pelo comandante Harville com o comandante Wentworth, e ouviu imediatamente queMary e Henrietta, demasiado impacientes para conseguirem esperar, tinham saído assim queparara de chover mas voltariam dentro em breve, e a Sra. Musgrove tinha recebido instruçõescategóricas para a manterem ali até elas regressarem.Restou-lhe obedecer, sentar-se, exteriormente tranquüila, e sentiu-se mergulharimediatamente em toda a agitação com que não contara antes do fim da manhã. Não houvequalquer demora ou perda de tempo. Sentiu-se de imediato profundamente feliz em talinfelicidade, ou na infelicidade de tal felicidade. Dois minutos depois de ela entrar na sala, ocomandante Wentworth disse:- Podíamos escrever a carta de que estávamos a falar, Harville, se me dessem os apetrechos.Os apetrechos estavam à mão, numa escrivaninha separada; ele dirigiu-se a ela e, quase voltandoas costas a todos eles, ficou absorto na escrita. A Sra. Musgrove estava a contar à Sra. Croft ahistória do noivado da filha mais velha, e fazia-o naquele inconveniente tom de voz que, emborafingisse ser um murmúrio, se ouvia perfeitamente.Anne sentiu que não tomava parte na conversa e, no entanto, como o comandante Harvilleparecia pensativo e com pouca vontade de conversar, ela não conseguiu deixar de ouvir algunspormenores desagradáveis, tais como - o Sr. Musgrove e o meu irmão Hayter encontraram-semuitas vezes para conversar sobre o assunto; o que o meu irmão Hayter tinha dito um dia, o que oSr. Musgrove propusera no seguinte, e o que ocorrera à minha irmã Hayter, e o que os jovenstinham querido, e aquilo com que eu, a princípio, disse que nunca concordaria, mas mais tarde fuipersuadida a concordar - , e muito mais coisas no mesmo estilo de comunicação aberta, minúciasque, mesmo com gosto e delicadeza, a Sra. Musgrove nunca poderia dar, poderia ser altamenteinteressante para as partes mais interessadas. A Sra. Croft participava com muito humor, e,quando falava, fazia-o com grande sensatez.Anne tinha esperança de que todos os cavalheiros estivessem demasiado entretidos paraouvir a conversa.- E assim, minha senhora, considerando todas estas coisas ' - disse a Sra. Musgrove no seupotente murmúrio -, e embora pudéssemos desejar que as coisas se passassem de modo diferente,não achamos que fosse justo manter-nos de parte por mais tempo. Charles Hayter estavaentusiasmadíssimo, e Henrietta estava quase na mesma; e, por isso, pensamos que era melhor quese casassem imediatamente e se arranjassem o melhor que pudessem, como tantos outros fizeramantes deles. De qualquer modo, disse eu, será melhor do que um noivado longo.- Era isso precisamente o que eu ia dizer - exclamou a Sra. Croft. - Acho preferível os jovenscasarem-se imediatamente com um rendimento pequeno e terem de lutar juntos contra algumasdificuldades a verem-se envolvidos num noivado longo. Eu sempre achei que um mútuo...- Oh!, minha querida Sra. Croft- exclamou a Sra. Musgrove, incapaz de a deixar terminar afrase -, não existe nada tão abominável para os jovens como um noivado comprido. Sempredetestei isso para os meus filhos. Está tudo muito bem, costumo eu dizer, que os jovens se tornemnoivos, desde que tenham a certeza de que poderão casar passados seis meses, ou mesmo doze,mas agora um noivado longo!114- Claro, querida senhora - disse a Sra. Croft-, ou um noivado incerto, um noivado que podeser longo. Para já, sem se saber se na altura haverá condições para o casamento, parece-me muitodesaconselhável e insensato e acho que todos os pais devem evitá-lo o mais que puderem.Anne encontrou nestas palavras um interesse inesperado. Sentiu que se aplicavam a siprópria, sentiu-se percorrida por um estremecimento nervoso, e, ao mesmo tempo que os seusolhos se voltavam instintivamente para a escrivaninha distante, a pena do comandanteWentworth deixou de se mover; ele ergueu a cabeça, fez uma pausa, escutou e olhou em volta noinstante seguinte para lhe lançar um olhar fugaz e consciente. As duas senhoras continuaram aconversar, a reiterar as mesmas verdades conhecidas e a reforçá-las com exemplos dos efeitosadversos de procedimentos contrários que tinham observado, mas Anne não ouviu nadadistintamente, era apenas um zumbido aos seus ouvidos, a sua mente era um turbilhão.O comandante Harville, que, na verdade, não tinha ouvido nada, levantou-se e dirigiu-se auma janela; ao ver que Anne parecia estar a olhar para ele, embora o fitasse apenas por distração,percebeu pouco a pouco que ele a convidava para se juntar a ele. Ele olhava-a com um sorriso eum pequeno movimento de cabeça que pareciam querer dizer: - Venha ter comigo, tenho algopara lhe dizer - ; e a amabilidade simples dos seus modos, que denotava os sentimentos de umconhecimento mais antigo do que de fato era, reforçou o convite. Ela levantou-se e dirigiu-se a ele.A janela junto da qual ele se encontrava estava situada no extremo da sala oposto ao local em queas senhoras estavam sentadas e, embora estivesse mais próxima da escrivaninha do comandanteWentworth, não estava muito perto desta. O rosto do comandante Harville readquiriu a expressãoséria e pensativa que lhe era habitual.- Olhe aqui - disse ele, desembrulhando um pacote que tinha na mão e mostrando umapequena miniatura pintada -, sabe quem é?- Com certeza, é o comandante Benwick.- Sim, e também pode adivinhar a quem se destina. Mas acrescentou numa voz grave - nãofoi feita para ela. Menina Elliot, recorda-se de passearmos em Lyme e de nos afligirmos por causadele? Mal pensava eu então... mas não importa. Esta miniatura foi feita no Cabo. Ele conheceu umjovem e inteligente artista alemão e, para cumprir uma promessa feita à minha pobre irmã,pousou para ele, e trazia o retrato para ela. E agora fui encarregado de o mandar emoldurar paraoutra! Pediu-me a mim! Mas a quem mais havia ele de se dirigir? Espero poder fazê-lo bem. Naverdade, estou satisfeito por passá-lo a outra pessoa. Ele vai encarregar-se do assunto, olhou nadireção do comandante Wentworth -, ele está a escrever sobre isso neste momento. - E, com lábiostrêmulos, resumiu o seu pensamento, acrescentou: - Pobre Fanny! Ela não o teria esquecido tãodepressa!- Não - respondeu Anne, numa voz baixa e sentida. - Isso eu acredito.- Não estava na sua natureza. Ela adorava-o.- Isso não estaria na natureza de qualquer mulher que amasse verdadeiramente.O comandante Harville sorriu, como se quisesse dizer:- Diz isso do seu sexo?E ela respondeu, sorrindo também:- Digo. Nós certamente que não vos esquecemos tão depressa como vocês nos esquecem. Issoé talvez o nosso destino, e não o nosso mérito. Não conseguimos evitá-lo. Nós vivemos em casa,sossegadas, confinadas e os nossos sentimentos perseguem-nos. Os homens são obrigados a teruma atividade. Têm sempre uma profissão, interesses, negócios de um tipo ou de outro, para oslevar imediatamente de volta para o mundo e a ocupação e a alteração constantes depressadiminuem qualquer depressão.115- Mesmo admitindo que a sua afirmação de que as ocupações mundanas dos homensconseguem tudo seja verdadeira, o que eu, porém, acho que não admito, isso não se aplica aBenwick. Ele não teve de exercer nenhuma atividade. A paz colocou-o em terra nesse precisomomento, e ele tem vivido conosco, no nosso pequeno círculo familiar, desde então.- É verdade - disse Anne -, muito verdade, não me lembrava; mas que poderemos dizeragora, comandante Harville? Se a mudança não foi provocada por circunstâncias exteriores, entãodeve ter-lhe vindo do íntimo, deve ter sido a natureza, a natureza do homem, que agiu no caso docomandante Benwick.- Não, não, não é a natureza do homem. Eu não vou concordar que esteja mais na naturezado homem do que no da mulher ser inconstante e esquecer os que amam ou amaram. Acredito nocontrário. Eu acredito numa verdadeira analogia entre a nossa estrutura física e mental; e, como onosso corpo é mais forte, os nossos sentimentos também o são, capazes de suportar as mais rudesprivações e de sobreviver a terríveis tempestades.- Os vossos sentimentos podem ser mais fortes – respondeu Anne -, mas o mesmo espírito deanalogia permite-me assegurar que os nossos são mais delicados. O homem é mais robusto que amulher, mas não vive mais tempo; o que explica exatamente o meu ponto de vista em relação aosafetos. Não, seria demasiado duro para vós se fosse de outra maneira. Vós tendes de lutar contradificuldades, privações e perigos suficientes. Estais sempre a trabalhar e a labutar, expostos atodos os riscos e privações. Abandonais tudo: lar, país e amigos. Não podeis chamar vosso: aotempo, à saúde ou à vida. Seria realmente demasiado duro- concluiu ela com voz tremula - se atudo isso fossem adicionados sentimentos femininos.- Nós nunca havemos de chegar a um acordo neste ponto, começou o comandante Harville adizer quando um ligeiro ruído atraiu a atenção dos dois para a parte da sala em que o comandanteWentworth se encontrava e que estivera, até então, perfeitamente silenciosa. Fora simplesmente apena que caíra, mas Anne estremeceu ao ver que ele estava mais próximo do que supusera esentiu-se meio inclinada a desconfiar de que a pena caíra porque ele se distraíra com eles,tentando ouvir o que diziam; ela achava, porém, que ele não poderia ter ouvido.- Acabaste a carta? - perguntou o comandante Harville.- Ainda não, faltam algumas linhas. Acabarei dentro de cinco minutos.- Pela minha parte, não há pressa. Estarei pronto quando quiseres. Estou muito bem aqui -(sorrindo para Anne) -, bem provido e com tudo o que desejo. Não tenho pressa de qualquer sinal.Bem, Menina Elliot - prosseguiu ele baixando a voz -, como eu estava a dizer, suponho que nuncavamos estar de acordo a este respeito. Provavelmente, nenhum homem ou mulher estaria. Masdeixe-me fazer-lhe notar que todas as histórias estão contra si, todas as histórias, em prosa e emverso. Se eu tivesse uma memória como Benwick, conseguiria, neste momento, apresentar-lhecinqüenta citações a favor do meu argumento, e acho que nunca abri um livro na minha vida quenão tivesse algo a dizer sobre a inconstância das mulheres. Todas as canções e provérbios falam davolubilidade da mulher. Mas talvez me diga que foram todos escritos por homens.- Talvez diga. Sim, sim, por favor, nada de referências a exemplos em livros. Os homens têmtodas as vantagens sobre nós, ao contarem as suas histórias. Eles têm usufruído de muito maisinstrução; a pena tem estado nas suas mãos. Eu não vou permitir que os livros provem nada.- Mas como vamos provar alguma coisa?- Nunca o faremos. Jamais poderemos provar alguma coisa sobre esse ponto. É umadiferença de opinião que não admite prova. Ambos começamos provavelmente com uma ligeiraparcialidade a favor do nosso sexo e, com base nessa parcialidade, construímos todas ascircunstâncias a seu favor que ocorreram dentro do nosso círculo; muitas dessas circunstâncias,talvez os casos que mais nos impressionam, podem ser exatamente os que não conseguem ser 116apresentados sem trairmos uma confidência ou, nalgum aspecto, dizermos o que não deveria serdito.- Ah! - exclamou o comandante Harville num tom de forte emoção -, se eu pudesse, aomenos, fazê-la compreender o que um homem sofre quando vê, pela última vez, a mulher e osfilhos e fica a olhar para o barco em que os mandou embora até o perder de vista e depois se vira ediz: Só Deus sabe se nos voltaremos a encontrar. - E, depois, se eu pudesse transmitir-lhe afelicidade da sua alma quando volta a vê-los; quando, ao regressar de uma ausência de talvezdoze meses, é obrigado a parar noutro porto, ele calcula a rapidez com que será possível trazê-losaté ali, finge enganar-se, dizendo:- Eles só cá podem chegar em tal dia - , mas sempre com a esperança de que cheguem dozehoras mais cedo; e, ao vê-los chegar, finalmente, como se o céu lhes tivesse dado asas, muitashoras antes... Se eu lhe pudesse explicar tudo isto e tudo o que um homem pode suportar ou fazer,e se orgulha de fazer, por aqueles tesouros da sua existência! Refiro-me apenas aos homens quetêm coração! - E, emocionado, ele apertava o seu.- Oh! - exclamou Anne entusiasticamente -, eu espero ser justa para com tudo o que sente epara com aqueles que se parecem consigo. Deus me defenda de menosprezar os sentimentosafetuosos e fiéis de quaisquer dos meus semelhantes. Seria merecedora do mais completodesprezo se me atrevesse a supor que o verdadeiro afeto e a constância são apanágio apenas dasmulheres. Não, eu acredito que sois capazes de tudo o que ‚ grandioso e bom na vossa vidamatrimonial. Acredito que sois capazes de fazer qualquer esforço importante e qualquer sacrifíciopessoal desde que... se me permitis a expressão, desde que tenhais um objetivo. Quero dizer,enquanto a mulher que amais é viva e viva para vós. O privilégio que reclamo para o meu sexo...não é muito invejável, não precisais de o cobiçar... É o de amar mais tempo, quando a existênciaou a esperança já desapareceram. Ela não conseguiria dizer, de imediato, outra frase; sentia-sedemasiado emocionada e a sua respiração estava demasiado ofegante.- A menina é uma boa alma - exclamou o comandante Harville colocando-lhe a mãoafetuosamente no braço. - Não é possível discutir consigo. E, quando penso em Benwick, fico sempalavras.Os outros reclamaram a sua atenção. A Sra. Croft estava a despedir-se.- Agora, Frederick, creio que nos vamos embora - disse ela. Eu vou para casa, e tu tens umencontro com o teu amigo. Esta noite teremos o prazer de nos encontrar todos em sua casa(voltando-se para Anne).- Recebemos o cartão da sua irmã ontem, e creio que Frederick também recebeu um, emboraeu não o tenha visto... e tu não tens nenhum compromisso, Frederick, pois não, tal como nós?O comandante Wentworth estava a dobrar apressadamente uma carta, e não podia ou nãoqueria dar uma resposta decisiva.- Sim - disse ele -, é verdade; separamo-nos aqui; mas eu e Harville depressa iremos tercontigo, isto é, Harville, se estiveres pronto, eu estarei daqui a meio minuto. Eu sei que não teimportas de te ir embora. Estarei ao teu dispor daqui a meio minuto.A Sra. Croft despediu-se, e o comandante Wentworth, depois de ter selado a carta comgrande rapidez, estava realmente pronto e tinha até um ar apressado, agitado, que denotavaimpaciência em ir-se embora. Anne não sabia o que pensar.O comandante Harville despediu-se muito amavelmente: - Bom dia, bem haja! - mas ele nãodisse nada, nem sequer olhou para ela. Saiu da sala sem a olhar! Ela só teve tempo, contudo, de seaproximar da escrivaninha onde ele estivera a escrever, quando se ouviram passos; a porta abriuse;era ele.117Ele pediu desculpa, mas tinha-se esquecido das luvas, e atravessou imediatamente a sala atéà escrivaninha e, colocando-se de costas para a Sra. Musgrove, tirou uma carta de debaixo dopapel espalhado, colocou-a em frente de Anne, fitando-a por um momento com um olharbrilhante de súplica, pegou rapidamente nas luvas e voltou a sair da sala, quase antes de a Sra.Musgrove ter reparado que ele ali estava, tudo se passou num instante.A agitação que apenas um instante provocou em Anne foi quase inexprimível. A carta,endereçada, numa letra quase ilegível, a "Menina A. E." era obviamente a que ele dobrara comtanta pressa. Enquanto estava, supostamente, a escrever ao comandante Benwick, ele escreveralhetambém a ela. Tudo o que o mundo podia fazer por ela, dependia do conteúdo daquela carta!Tudo era possível, e era preferível desafiar tudo a continuar na expectativa.A Sra. Musgrove tinha algumas coisas a preparar na sua mesa; ela devia confiar na suaproteção e, deixando-se cair na cadeira que ele ocupara, sucedeu-lhe no mesmo lugar onde sedebruçara a escrever, e os seus olhos devoraram as seguintes palavras:"Já não consigo escutar em silêncio. Tenho de lhe falar pelos meios ao meu alcance. Anne transpassamea alma. Sinto-me entre a agonia e a esperança. Não me diga que é demasiado tarde, que sentimentos tãopreciosos morreram para sempre.Declaro-me novamente a si com um coração que é ainda mais seu do que quando o despedaçou há oitoanos e meio.Não diga que o homem esquece mais depressa que a mulher, que o amor dele morre mais cedo. Eu nãoamei ninguém, se não a ti. Posso ter sido injusto, posso ter sido fraco e rancoroso, mas nunca inconstante.Vim a Bath unicamente por sua causa. Os meus pensamentos e planos são todos para si.Não reparou nisso? Não percebeu dos meus desejos? Se eu tivesse conseguido ler os seus sentimentos,como creio que deve ter decifrado os meus, não teria esperado estes dez dias. Mal consigo escrever. A todo omomento estou a ouvir uma coisa que me emociona. Anne baixa a voz, mas eu consigo ouvir os tons dessavoz, mesmo quando os outros não conseguem.Criatura demasiada boa, demasiada pura! Faz-nos, de fato, justiça, ao acreditar que os homens sãocapazes de um verdadeiro afeto e uma verdadeira constância. Creia que esta é fervorosa e firme no F. W.Tenho de ir, inseguro quanto ao meu futuro; mas voltarei, ou seguirei o seu grupo, logo que possível. Umapalavra, um olhar será o suficiente para decidir se irei à casa do seu pai esta noite, ou nunca.Depois da leitura desta carta, era impossível recompor-se rapidamente. Ao fim de meia horade solidão e meditação, talvez se tivesse sentido mais calma; mas os dez minutos que decorreramaté ser interrompida, juntamente com a necessidade de se conter, não podiam ser suficientes paraa acalmar. Pelo contrário, cada momento trazia uma nova onda de agitação. Era uma felicidadeesmagadora. E, antes de ter ultrapassado a primeira fase de intensa emoção, chegaram Charles,Mary e Henrietta.A necessidade absoluta de não parecer diferente do habitual produziu uma luta interiorimediata; mas, ao fim de algum tempo, já não conseguia fazê-lo. Começou a não compreenderuma única palavra do que eles diziam e foi obrigada a alegar que estava indisposta e a pedirdesculpa.Eles viram então que ela parecia muito doente – ficaram chocados e preocupados erecusaram-se a sair dali sem ela. Isto foi terrível! Se ao menos eles se fossem embora e a deixassemsossegada, sozinha naquela sala, isso teria constituído a sua cura; mas tê-los todos de pé à suavolta incomodava-a, e, por fim, desesperada, disse que ia para casa. 118- Com certeza, minha querida - exclamou a Sra. Musgrove -, vá já para casa e trate-se, paraestar bem logo à noite. Quem me dera que Sarah estivesse aqui para a tratar, mas eu não sou boaenfermeira. Charles vai mandar vir uma carruagem. Ela não deve ir a pé.Mas ela não queria uma carruagem. Seria pior que tudo! A idéia de perder a possibilidade dedizer duas palavras ao comandante Wentworth no decurso do seu passeio calmo e solitário pelacidade - tinha quase a certeza de que iria encontrar-se com ele - era insuportável. Assim, protestouenergicamente contra a carruagem; e a Sra. Musgrove, que pensava apenas num tipo de doença,tendo-se certificado, com alguma ansiedade, de que neste caso não houvera queda; de que Annenão tinha, recentemente, escorregado e batido com a cabeça; convencendo-se, finalmente, de quenão houvera qualquer queda, despediu-se dela bem-disposta e disse que esperava encontrá-lamelhor à noite. Ansiosa por não descurar qualquer possível precaução, Anne fez um esforço edisse:- Receio, minha senhora, que não esteja tudo bem esclarecido. Peço-lhe que tenha a bondadede dizer aos outros cavalheiros que esperamos ver todo o grupo esta noite. Receio que tenhahavido algum engano e gostaria que garantisse particularmente ao comandante Harville e aocomandante Wentworth que esperamos vê-los, a ambos, esta noite.- Oh, minha querida, está tudo bem claro, dou-lhe a minha palavra. O comandante Harvillenão pensa, se não em ir.- Acha que sim? Mas eu tenho medo, e teria tanta pena! Promete que lhes fala nisso quandoos voltar a ver? Certamente que os vai ver outra vez esta manhã. Promete?- Com certeza, se quiser que o faça. Charles, se vires o comandante Harville em qualquerlado, lembra-te de lhe transmitir a mensagem de Anne. Mas, na verdade, minha querida, nãoprecisa de se preocupar. O comandante Harville considera a noite comprometida, garanto-o e omesmo se passa com o comandante Wentworth, creio.Anne não podia fazer mais nada; mas o seu coração profetizava-lhe qualquer mal-entendidoque iria estragar a perfeição da sua felicidade. Mas isso não duraria muito, porém. Mesmo que elepróprio não fosse a Camden Place, ela poderia enviar-lhe, pelo comandante Harville, uma fraseinteligível.Ocorreu ainda outro contratempo. Charles, na sua bondade e verdadeiramente preocupadocom ela, quis acompanhá-la até casa; não era possível evitá-lo. Isto era quase cruel! Mas ela nãopodia mostrar-se ingrata por muito tempo; ele estava a sacrificar um compromisso num armeiropara lhe ser prestável e, assim, ela partiu com ele, sem outro sentimento aparente além dagratidão.Estavam na Union Street quando um passo mais apressado atrás deles, um som familiar, lhedeu dois momentos de preparação para o aparecimento do comandante Wentworth. Este seaproximou deles; mas, indeciso se deveria seguir com eles ou prosseguir sozinho, não disse nada,limitou-se a olhar. Anne conseguiu dominar-se o suficiente para receber aquele olhar semconstrangimento. As faces que tinham estado pálidas coraram, e os movimentos que tinham sidohesitantes tornaram-se decididos. Ele caminhou ao lado dela. Subitamente, tomado por umpensamento, Charles disse:- Capitão Wentworth, em que direção vai? Só até Gay Street ou mais para cima?- Nem sei bem - foi a resposta do capitão Wentworth, surpreendido.- Vai até Belmont? Perto de Camden Place? Porque, se vai, não terei escrúpulos em lhe pedirque tome o meu lugar e acompanhe Anne até casa. Ela está cansada esta manhã e não deve ir tãolonge sem companhia. E eu devia estar na loja daquele sujeito no mercado. Ele prometeu mostrarmeuma arma estupenda que vai enviar para fora; disse que a manteria desempacotada até aoúltimo momento, só para eu a ver; e, se eu não voltar para trás agora, não tenho a mínima 119possibilidade. Pela descrição dele, é muito semelhante à minha arma de dois canos que levei umdia à caça nos arredores de Winthrop.Não podia haver objeção. Em público, só podia haver uma alegria comedida, uma amávelaquiescência; e sorrisos contidos e uma excelente disposição que disfarçavam a enorme felicidadeinterior.Meio minuto depois, Charles encontrava-se de novo ao fundo da Union Street, e os outrosdois prosseguiram no caminho juntos; e, pouco depois, tinham trocado palavras suficientes paradecidirem dirigir-se para a calçada relativamente mais calma e retirada, onde a possibilidade deconversarem tornaria esta hora uma verdadeira dádiva celestial, preparando-a para aimortalidade que as mais felizes recordações das suas vidas futuras lhe pudessem conceder.Ali, trocaram eles de novo aquelas juras e promessas que outrora pareceram assegurar-lhestudo, mas que tinham sido seguidas de tantos, tantos anos de separação e indiferença. Aliregressaram eles ao passado, mais intensamente felizes, talvez, na sua nova união, do que quandoesta fora projetada pela primeira vez; mais meigos, mais experimentados, mais seguros doconhecimento do caráter, da sinceridade e do afeto um do outro; mais capazes de agir, com maismotivo para agir. E ali, enquanto subiam lentamente a colina, alheios aos grupos que osrodeavam, não vendo nem os políticos que por ali vagueavam, nem as governantas azafamadas,nem as meninas que namoravam, nem amas nem crianças, puderam entregar-se às recordações eprincipalmente às explicações do que precedera imediatamente o momento presente, as quaistinham um interesse tão intenso e tão infindável. Relembraram todas as pequenas ocorrências daúltima semana; e as do dia anterior e desse dia pareciam não ter fim.Ela não se tinha enganado a respeito dele. Os ciúmes do Sr. Elliot tinham funcionado como opeso retardador, a dúvida, o tormento. Estes tinham começado assim que se encontraram pelaprimeira vez em Bath; tinham voltado, após uma breve interrupção, para estragar o concerto; etinham-no influenciado em tudo o que ele dissera e fizera, ou deixara de dizer ou fazer durante asúltimas vinte e quatro horas. Eles tinham cedido, a pouco e pouco, perante a esperança que osolhares dela, as suas palavras ou ações ocasionalmente encorajavam; tinham sido finalmentevencidos pelos sentimentos e palavras que tinham chegado até ele enquanto ela falava com ocomandante Harville e, num impulso irresistível, ele resolvera agarrar numa folha de papel edeclarar os seus sentimentos. Aquilo que tinha escrito, não havia nada a alterar ou desdizer. Eleinsistia que não amara ninguém a não ser ela. Ela nunca fora suplantada. Ele achava que nuncavira ninguém igual a ela. Isso era obrigado a admitir - que fora constante inconscientemente, ou,por outra, sem tencionar sê-lo; fizera por esquecê-la e achava que o fizera.Imaginara-se indiferente, quando só estava zangado; e tinha sido injusto para com as suasqualidades porque sofrera por causa delas. Agora, considerava o caráter dela como a própriaperfeição, mantendo o mais encantador equilíbrio entre a coragem e a ternura; mas era obrigado areconhecer que só em Uppercross é que aprendera a fazer-lhe justiça, e só em Lyme começara aconhecer-se a si próprio. Em Lyme, recebera lições de vários tipos. A admiração momentânea doSr. Elliot tinha-o, pelo menos, despertado, e as cenas no Cobb e em casa do comandante Harvilletinham demonstrado bem a sua superioridade.Sobre as tentativas anteriores de se afeiçoar a Louisa Musgrove, tentativas provocadas peloorgulho ferido, ele afirmou que sentira que tal era impossível; não amara, não podia amar Louisa;embora, antes daquele dia, antes do tempo livre para reflexão que se lhe seguiu, ele não tivessecompreendido a excelente perfeição do seu espírito, com o qual o de Louisa não se podiacomparar; ou a enorme e inigualável influência que ele exercia sobre o seu. Ali, ele aprendera adistinguir entre a firmeza de princípios e a teimosia obstinada, entre a ousadia da imprudência e aresolução de uma alma serena. Ali, ele vira tudo para exaltar, na sua estima, a mulher que 120perdera, e ali começara a lamentar o seu orgulho, a tolice, a loucura do ressentimento que oimpedira de tentar recuperá-la quando ela surgira no seu caminho.A partir dessa altura, o seu castigo tornara-se severo. Assim que se libertara do horror e doremorso que acompanharam os primeiros dias após o acidente de Louisa, assim que começou asentir-se vivo de novo, começou a sentir que, embora estivesse vivo, não era livre.- Descobri - disse ele - que Harville me considerava um homem comprometido! NemHarville nem a mulher tinham a menor dúvida sobre o nosso afeto mútuo. Fiquei admirado echocado. Até certo ponto, eu podia negá-lo imediatamente, mas, quando comecei a refletir queoutros pudessem pensar o mesmo – a família dela, talvez ela própria, deixei de me sentir àvontade. Eu era dela; pela honra, se ela quisesse. Eu fora leviano. Não tinha pensado a sério noassunto antes. Não tinha pensado que a excessiva intimidade da minha parte teria forçosamenteconseqüências nocivas em muitos aspectos; e que eu não tinha o direito de estar a tentar ver a qualdas meninas me poderia afeiçoar, com o risco de provocar rumores desagradáveis, mesmo quenão houvesse outros efeitos prejudiciais. Tinha agido muito mal, e havia que sofrer àsconseqüências.Em resumo, ele soubera demasiado tarde que se metera em problemas; e que, precisamentequando se compenetrara de que não gostava de Louisa, devia considerar-se comprometido comela, se os sentimentos dela por ele fossem o que os Harville supunham. Isso decidiu-o a sair deLyme e aguardar o restabelecimento total dela noutro local. Ele faria, de boa vontade, enfraquecer,por quaisquer meios leais, os sentimentos ou especulações a seu respeito que pudessem existir; e,assim, foi para casa do irmão, tencionando, após algum tempo, regressar a Kellynch e agirconforme as circunstâncias o exigissem.- Passei seis semanas com Edward - disse ele - e vi-o feliz. Foi o único prazer que encontrei.Eu não merecia nada. Ele, perguntou muito particularmente por ti; até perguntou se estavasmudada, não desconfiando de que, aos meus olhos, tu nunca mudarias.Anne sorriu e não disse nada. Era um erro demasiado agradável para o poder censurar.Significa alguma coisa para uma mulher assegurarem-lhe que, aos 28 anos, não perdeu o encantoda juventude; mas o valor desse elogio aumentou imenso para Anne ao compará-lo com palavrasanteriores e sentindo que este era o resultado e não a causa do renascimento do seu caloroso afeto.Ele tinha ficado em Shropshire, lamentando a cegueira do seu orgulho e os erros dos seuscálculos, até se ter visto, de repente, livre de Louisa, pela espantosa e feliz notícia do seu noivadocom Benwick.- Com isso - disse ele - terminou o pior período da minha situação; pois agora eu podiacolocar-me no caminho da felicidade, podia esforçar-me, podia fazer qualquer coisa. Mas esperartanto tempo inativo, e esperar apenas o pior, tinha sido terrível.Passados cinco minutos, disse: - Estarei em Bath na quarta-feira. - E estive. Seria imperdoávelpensar que valia a pena vir? E chegar com alguma esperança? Seria possível que mantivesses ossentimentos do passado, como eu fizera? Havia uma coisa que me dava coragem. Eu nuncapoderia duvidar de que tivesses sido amada e pretendida por outros, mas eu sabia com certezaque tinhas recusado pelo menos um homem com perspectivas melhores do que as minhas; e nãoconseguia deixar de pensar com frequência: - Foi por minha causa? - Haveria muito a dizer sobreo seu primeiro encontro em Milsom Street, sobre o concerto ainda mais. Essa noite pareceu serfeita de momentos extraordinários. O momento em que ela entrou na sala octogonal e falou comele, o momento em que o Sr. Elliot apareceu e a levou consigo, e um ou dois momentossubseqüentes, marcados pelo regresso da esperança ou pelo desânimo crescente, foram discutidosenergicamente.121- Ver-te - exclamou ele - no meio daqueles que não podiam desejar-me felicidades, ver o teuprimo próximo de ti, a conversar e sorrir, e sentir todas as horríveis vantagens e conveniênciasdesse casamento! Considerá-lo como desejo certo de todas as pessoas com possibilidades de teinfluenciar! Pensar que poderosos apoiantes ele tinha, mesmo que os teus sentimentos fossem derelutância ou indiferença! Não seria tudo isto suficiente para fazer de mim o tolo que euaparentava ser? Como podia olhar em redor sem angústia? A amiga sentada atrás de ti, àrecordação do que acontecera, o conhecimento da sua influência, o efeito indelével e permanentedo que a persuasão provocara - não estava tudo isso contra mim?- Tu devias ter notado a diferença - respondeu Anne. – Não devias ter duvidado de mimagora; a situação era tão diferente; a minha idade era tão diferente. Se eu errei ao ceder uma vez àpersuasão, lembra-te de que foi uma persuasão exercida a pensar na segurança, não no risco.Quando cedi, pensei que cumpria o meu dever; mas agora não estava nenhum dever em causa. Secasasse com um homem que me era indiferente, teria corrido todos os riscos e violado todos osdeveres.- Eu talvez devesse ter raciocinado assim - respondeu ele -, mas não consegui. Não conseguibeneficiar com o conhecimento sobre o teu caráter que adquirira recentemente. Não podia fazê-loentrar em cena; eu estava submerso, soterrado, perdido nos sentimentos que me tinhamatormentado ano após ano. Só podia pensar em ti como a mulher que tinha cedido, que tinhadesistido de mim, que tinha sido influenciada por alguém que não fora eu. Vi-te com a pessoa quete tinha aconselhado naquele ano de infelicidade. Eu não tinha motivos para pensar que ela agoragozasse de menos autoridade. Além disso, havia a força do hábito.- Julgava - disse Anne - que a minha atitude para contigo te poderia ter poupado muitosdesses pensamentos.- Não! Não! A tua atitude poderia ser apenas o à-vontade que o teu noivado com outrohomem te conferiria. Deixei-te com esta convicção; e, no entanto, eu estava decidido a voltar a verte.A minha disposição melhorou de manhã, e senti que ainda tinha um motivo para continuar cá.Anne chegou, finalmente, a casa, mais feliz do que alguém naquela casa conseguiria imaginar.Toda a surpresa e expectativa, todas as impressões dolorosas da manhã se tinham dissipado comesta conversa, e voltou a entrar em casa tão feliz que foi obrigada a procurar controlar-seimaginando preocupações súbitas com a impossibilidade de aquilo durar para sempre.Um intervalo de meditação, séria e agradecida, era o melhor remédio para todos os perigosde tão grande felicidade; e ela foi para o seu quarto e sentiu-se mais firme e intrépida ao dargraças à sua ventura.Chegou a noite, os salões foram iluminados, os convidados reuniram-se. Não passava deuma reunião para jogar às cartas, não passava de uma mistura dos que nunca se tinhamencontrado com os que se encontravam com demasiada freqüência - um serão vulgar, demasiadonumeroso para ser íntimo, demasiado pequeno para haver variedade; mas, para Anne, nunca umserão tinha sido tão curto. Resplandecente de felicidade e encantadora, e mais admirada por todosdo que imaginava ou se preocupava, sentia-se bem-disposta e tolerante para com toda a gente àsua volta.O Sr. Elliot estava lá; ela evitou-o, mas teve pena dele. Quanto aos Wallis; divertia-acompreender as suas manobras. Lady Dalrymple e a Menina Carteret em breve seriam primasdistantes dela. Não se aborreceu com a Sra. Clay, e teve de corar com os modos do pai e da irmãem público. Com os Musgrove, foi uma conversa alegre perfeitamente à vontade; com ocomandante Harville, trocou palavras afetuosas, como entre irmãos; com Lady Russell, tentouentabular uma conversa que um delicioso pensamento interrompeu; com o almirante e a Sra. Croftmanteve uma cordialidade especial e um interesse fervoroso, que o mesmo pensamento tentou 122disfarçar - e com o comandante Wentworth havia constantemente alguns momentos de conversa,sempre a esperança de mais, e sempre o conhecimento de que ele estava ali.Foi num desses breves encontros, em que ambos fingiam admirar umas magníficas plantasde estufa, que ela disse:- Tenho estado a pensar no passado e a tentar julgar imparcialmente o que esteve certo e oque esteve errado, quero dizer, a respeito de mim própria; sou obrigada a acreditar que tive razão,por muito que tenha sofrido por causa disso, que tive razão em me deixar guiar por uma amiga dequem vais gostar mais do que agora gostas. Para mim, ela era como minha mãe. Não meinterpretes mal, porém. Não estou a dizer que não errei ao seguir os seus conselhos. Foi, talvez,um daqueles casos em que o conselho é bom ou mau segundo o desenrolar dos acontecimentos;quanto a mim, certamente que, mesmo numa circunstância vagamente semelhante, nunca dariatais conselhos. Mas quero dizer que tive razão em seguir os dela, e que, se tivesse procedido deoutro modo, eu teria sofrido mais com a continuação do noivado do que sofri renunciando a ele,porque teria sofrido na minha consciência. Tanto quanto tal sentimento é permitido na naturezahumana, eu não tenho agora nada a censurar a mim própria; e, se não estou enganada, um fortesentido de dever não é um mau quinhão do dote de uma mulher.Ele olhou para ela, olhou para Lady Russell e, voltando a olhar para ela, respondeu, com friadeliberação:- Ainda não. Mas existe esperança de, à seu tempo, ela ser perdoada. Espero dar-me bemcom ela em breve. Mas também tenho estado a pensar no passado, e veio-me à mente umapergunta... se não teria havido uma pessoa que foi mais minha inimiga do que aquela senhora. Eumesmo. Diz-me se, quando regressei a Inglaterra em 1808, com alguns milhares de libras, e fuicolocado no Lavonia, se nessa altura te tivesse escrito, terias respondido à minha carta? Em suma,terias reatado o noivado nessa altura?- Se teria! - foi resposta dela; mas a entoação foi bem expressiva.- Meu Deus! - exclamou ele -, tê-lo-ias feito! Não foi que eu não tivesse pensado nisso, nem odesejasse como a única coisa que pudesse coroar todos os meus outros êxitos. Mas fui orgulhoso,demasiado orgulhoso para voltar a declarar-me. Não te compreendi. Fechei os olhos e não quiscompreender-te nem fazer-te justiça. Esta é uma recordação que deveria levar-me a perdoar a todaa gente mais depressa do que a mim próprio. Teria evitado seis anos de separação e sofrimento. Étambém uma espécie de dor a que não estou acostumado. Estou habituado ao prazer de me julgarmerecedor de todos os bens de que usufruía. Avaliava-me pelos trabalhos honrosos erecompensas merecidas. Como outros grandes homens que sofreram revezes acrescentou,sorrindo -, terei de habituar-me a sujeitar o meu espírito à minha sorte. Tenho de me habituar àidéia de ser mais feliz do que mereço.
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Persuasão
RomanceAnne Elliot , a heroína de PERSUASÃO, é uma nem tão jovem solteira que , seguindo os conselhos de uma amiga , dispensara, sete anos atrás , o belo e valoroso (porém sem título nobiliárquico e sem terras ) Frederick Wentwhort. No entanto , o futuro s...