Carta I - 1ª Parte

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23 de Dezembro de 2015

Caro Will,

Peço perdão por estar-te importunando o Natal e te presenteando com meus problemas e assombrações; mas desespera-me a necessidade de compartilhar com alguém o que se sucede comigo. Antes que eu fique louco.

Entenda, estou perdido em paixões por um fantasma.

Não creia-me louco, meu amigo. Embora eu esteja quase lá... Mas posso te jurar que todos os acontecimentos que têm me perturbado são tão reais quanto eu e você.

É de seu conhecimento que, em decorrência de minha frágil saúde, mudei-me para este lindo hotel no campo, há apenas duas semanas. Trata-se de uma residência monumental, datada do século XVI. Segundo a Sra. Mason, pertenceu aos Lancaster, uma das famílias mais poderosas e influentes da Inglaterra naquele período - e cuja linhagem perdeu-se atualmente. Os Mason compraram a mansão do último Lancaster vivo, no século passado, e desde então transformaram-na em um grande hotel-residência.

Sou muito bem tratado aqui; a Sra. Mason tem-me como um filho – o que particularmente acho muito estranho. A mulher conhece-me há apenas duas semanas.

Todos os dias, tomo o café-da-manhã e vou caminhar pelos campos. Há um pequeno povoado a um quilômetro daqui, onde me encontro com várias pessoas agradáveis, simpáticas e cheias de vida. Nessa época do ano, a região foi tomada pelo espírito natalino; casas e ruas estão enfeitadas com archotes, luzes coloridas e grandes pinheiros, e durante a noite o povoado transforma-se em um pequeno cenário de cartão-postal.

Passeio pelo povoado e pelos campos ao longo do dia, e volto ao hotel apenas na hora das refeições. Depois do jantar, vou para a biblioteca ler algum livro e, em seguida, sigo para o quarto e me entrego ao deus dos sonhos.

Começou semana passada, meu amigo. O jantar já estava terminado, mas alguns hóspedes ainda bebiam no salão de festas. Fui à biblioteca, o lugar mais deserto de toda aquela mansão, apanhei um livro qualquer e afundei-me em uma das confortáveis poltronas dispostas na sala. Nem se pergunte que livro era; é algo deveras irrelevante.

Há de ter sido uma leitura agradável, pois logo me desliguei do mundo e mergulhei na história. Dez minutos ou horas depois - tanto faz como o tempo corria - fui trazido de volta à realidade por uma música solitária. Alguém tocava o velho piano que há muito jazia abandonado entre as monumentais estantes. Fiquei ligeiramente estupefato, dado que desde que cheguei nesta casa nunca vi ou ouvi ninguém na biblioteca além de mim.

Levantei-me e contornei a grande estante que separava as poltronas em que eu estava do piano. Levei um grande susto.

Uma jovem que eu nunca vira antes tocava o instrumento, com incrível agilidade. A música era tão tristezinha que por alguns instantes fiquei paralisado, prestando atenção nas notas. Então recobrei os movimentos. Quem era aquela moça? Certamente não era uma das hóspedes.

Aproximei-me e fiquei a apenas alguns passos dela. Não conseguia ver seu rosto, mas também não tinha coragem de interrompê-la; foi então que reparei uma coisa, meu amigo, que me congelou até os ossos. Uma coisa que não pude perceber à distância, mas que agora era assustadoramente evidente: a jovem pianista era levemente transparente. Dava para ver fracamente, através do corpo dela, os contornos brancos das teclas do piano.

Eu não consegui correr, Will. Não consegui sequer me mover; fiquei apenas parado, o horror saltando-me aos olhos; e, como se sentisse meu medo, o espectro parou de tocar e se virou para mim.

Era uma jovem extremamente bonita. Cabelos negros e ondulantes, olhos claros e estranhamente vivos. Um vestido branco e esvoaçante descia-lhe até os pés descalços. No pescoço, havia um singelo colar ornado com um símbolo de nobreza – uma letra L envolta em flores.

A Canção do TempoOnde histórias criam vida. Descubra agora