Flagrada

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Quando cheguei em casa, pulei a janela da cozinha - como sempre -, coloquei o saco com o esquilo pequeno e um pato magro e deixei em cima da pia. Peguei um copo e enchi-o com água. Quando me virei vi minha mãe olhando para mim. Eu nem notei a presença dela. Merda! Ela não sabe que eu saio para caçar... Quer dizer, não sabia. Agora eu tinha que contar. Ela estava com os braços cruzados em cima do peito, me olhando com um olhar acusador, mas terno. Só minha mãe mesmo para colocar duas emoções distintas num olhar só.

- Oi, mãe. Eu só vim pegar um copo d'água. - menti, na tentativa de amenizar minha situação. Em vão, claro.

- Eu sei que estava caçando. Não precisa mentir pra mim. - ela pede. Abaixei a cabeça e apertei o copo. Me sentia levemente culpada por mentir.

- Desculpa. - foi tudo o que consegui dizer.

- Obrigada por querer sempre o melhor pra nós, querida. - ela se aproxima e me abraça. Eu a abraço de volta. - Mas caçar é perigoso. E você sabe que sou contra você fazendo isso. - bufei e me afastei.

- Não se preocupe, mãe. Está tudo bem. - ela balança a cabeça afirmando, mas sei que não concorda. - Você já sabia? - perguntei de repente - Já sabia que era eu quem trazia carne pra casa?

- Thina me contou no mês passado que viu você chegar às seis da manhã e supôs que você estivesse fazendo algo errado como... Roubar o alimento dos outros.

Roubando! Nunca!

- Ela disse o quê? - sibilo, indignada.

- Não fique chateada. Ela não sabe o que você tem feito por ela e por todos nós, Aly. Mas eu queria pedir para que pare. Por favor.

Olhei incrédula para ela:

- Mãe! Você não acha que eu esteja roubando, acha? - não acredito que ela chegou a pensar na hipótese de eu sequer pegar algo de alguém. Isso me enojou.

- Claro que não, Alyce. - ela esclarece. - Quero que pare porque é perigoso. Você não conhece a floresta como acha que conhece. Por favor, Alyce. Pare.

- Mãe... - retruquei. - Eu gosto de caçar. É a única coisa útil que sei fazer. Eu não vou parar.

- É. - ela murmura, num tom de derrota. - Eu sei que não vai. - então ela volta a se aproximar de mim - Só tome cuidado. E não vá muito longe da próxima vez. - e então ela me olha daquela maneira que toda mãe olha para fazer um filho se sentir culpado por seus atos. E ela tinha conseguido: eu me sinto culpada. Culpada por deixá-la preocupada; por mentir pra ela; por ter ficado raiva de minha meia-irmã Thina; e etc. E por fim, ela vem até mim e me abraça novamente e completa com aquela frase que sempre me desmonta quando a ouço dizer - Eu não quero perder você também, Alyce. - e então ela começou a fungar e eu senti que ela começava a chorar.

- Não vai acontecer nada comigo, mamãe. Eu te prometo. Eu juro. - olhei nos olhos dela. E vi uma preocupação diferente acompanhada de agonia e medo. Algo que eu só vi quando recebemos uma carta do setor Cinco dizendo que meu irmão Ryle havia sido carbonizado por uma bomba. Há anos eu não vi minha mãe assim.

O que está havendo? Por que todo mundo está com essa ideia de que vão me perder? De que corro perigo? Primeiro meu irmão Terry e agora minha mãe.

- Por que a senhora acha que vai me perder, mãe?

Ela abaixou a cabeça como se procurasse uma desculpa convincente o suficiente para me fazer parar de pensar na possibilidade de estar me escondendo algo.

- Eu só não quero que você se machuque, querida. Veja o que aconteceu com Honre por causa dessa mania de caçar. E ele era jovem e forte. Não quero nem pensar no que pode acontecer com você se lhe acontecer algo parecido. Não suporto a ideia! Precisa me entender, Alyce.

- Eu entendo, mãe. - e eu realmente entendia.

Ela beija minha testa e se aproxima do fogão à lenha.

- Vá descançar, meu bem.

Eu me viro e caminho em direção à escada. Antes que eu suba, Irina me chama e diz:

- Eu te amo, filha.

- Eu também te amo, mãe.

Coração De FogoOnde histórias criam vida. Descubra agora