Real

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A lua brilhava grande e onipresente. Não havia estrelas. Apenas a grande imensidão de escuridão do céu. Não ventava. Estava calmo e poderia até mesmo se dizer que estava calmo demais. Mas o garoto parecia gostar. Estava deitado sobre a água. Só havia o céu e o mar ali naquele lugar. O mar refletindo a imagem do céu, criando o efeito de infinito, e a grande lua ao horizonte. Por mais que estive sobre o líquido, não estava molhado. As costas desnudas não sentiam nada, tal como o resto do corpo. Os olhos se mantinham fechados, apreciando a calada da noite.

— Você parece perdido. — Uma voz grossa ecoara pelo local. Os orbes foram abertos repentinamente e o corpo se sobressaltara a procura daquele som. Levantara-se. Ao âmbito, ele o vira. Estava de costas e não conseguira apreciar seu rosto de imediato. Seguira até o estranho logo tendo a visão contemplada por aquela face que, em primeiro momento, julgou ser mais que perfeita.

— Quem é você? — A pergunta saíra baixa, quase que com medo da resposta. O desconhecido se aproximara de si, ficando poucos centímetros de distância. O mesmo sorrira, não aquele sorriso grande, apenas um pequeno repuxar de lábios. No mesmo momento o garoto sentira o coração palpitar. Como era bonito. Uma sensação de paz invadiu seu psíquico.

— Quem sou? Oras, Mark... Eu sou tudo aquilo que você quiser que eu seja.

♦ ♣ ♠ ♥

O banheiro era consideravelmente grande. Os azulejos muito bem postos, todos no tom branco. Era curioso como o branco se apoderava daquele lugar. Um pouco cômico se analisarmos o conceito filosófico, uma vez que seu significado era a paz. Mas com certeza, essa era a última coisa que os internos possuíam. Todos estavam presos em seus mundos desesperados. Gritando por algum motivo que nem mesmo eles sabiam. Talvez o branco fosse uma forma de cobrir os reais problemas daquele lugar. Uma máscara.

O corpo de Mark estava até a cintura mergulhado na água, que cobria a banheira no estilo rústico. Seus pais realmente não serviam para grandes coisas, mas pelo menos o dinheiro deles servia. Os pequenos luxos, tais como todo o material de desenho, o pequeno Ipod e até mesmo um banheiro particular para si, eram disponibilizados em seu pró. Incrível como pequenos pedaços de papéis faziam a diferença naquele mundo corrompido.

Os olhos se mantinham semicerrados. A mente distante, ponderando se deveria voltar a fazer aquilo novamente. Os orbes penderam para a mão direita, observando a pequena lâmina de uma gilete qualquer. A luz refletia sobre o metal. Mark julgara aquele pequeno brilho algo realmente encantador. Suspirou. Precisava daquilo.

Arrastara preguiçosamente o braço direito em direção ao esquerdo. O pequeno pedaço de metal tocou a pele do pulso. Gelado. Sorrira. Sentia a sensação de poder tomar-lhe o corpo. Era magnífico sentir a morte em suas mãos. Poder controlá-la. Sem hesitar, o corte fora traçado na horizontal, por cima de outros já feitos anteriormente. O vermelho pingara nas bordas da banheira.

Lágrimas escorriam por sua face, não exatamente pela dor. Talvez naquele momento, nem ele mesmo podia dizer do que realmente eram. Possuía um misto de sentimentos. A culpa o preenchia. Como se deixara chegar a esse ponto? Como se deixara ser tão... Fraco? A adrenalina percorria por sua corrente sanguínea e talvez o medo de ser pego tenha ocasionado isso. Ou era apenas porque sabia que aquilo era "errado". Mas, sobretudo, estava feliz. A dor era sua maior aliada quando sentia que poderia despencar.

Mark não tinha amigos. Não tinha pais. E em suas condições, era mais que natural que sua mente criasse seu próprio mundo. Aí que estava o perigo. Uma vez que se entra no imaginário e se apaixona por tal, se torna mais difícil sair. Se vive uma mentira. Era a linha tênue entre a sanidade e a loucura.

A agonia – não apenas física, mas especialmente a mental – que aqueles cortes causavam em si, o trazia de volta à realidade. Não pretendia pender para aquele lado, por mais que isso ferisse seu coração e sua mente gritasse por mais. Não enlouqueceria. Não daria esse gosto para a vida.

O pranto fora aumentado. Os soluços agora estavam audíveis. Machucava. Mas em meio àquele plangor, o sorriso permanecia intacto. Satisfação, talvez.

♦ ♣ ♠ ♥

O tempo passava de forma lenta. Estavam ali por volta de trinta minutos. Mark procurava encarar qualquer coisa; fosse o chão, as paredes em tons de vinho, o braço do sofá de couro preto e até a pequena estatueta do gatinho da sorte sobre a pequena mesa de centro; menos o homem sentado a sua frente. O via a cada duas vezes por semana desde seus doze anos. E de todas as pessoas que passaram pela sua vida, aquele psicólogo era a maior vítima de seu ódio. Não que o senhor tenha lhe feito algo, mas achava aquelas consultas totalmente desnecessárias. Não gostava de conversar, muito menos de contar seus problemas.

O silêncio era algo natural entre eles. Em grande parte, apenas trocavam alguns olhares durante aqueles sessenta minutos.

O doutor suspirou, chamando a atenção do garoto. Finalmente, os orbes se encontrando.

— Então, senhor Tuan. Uma das enfermeiras, a meu pedido, tomou a liberdade de mexer em seus desenhos. — Os lumes, até então sonolentos do menino, se arregalaram ao ver que o homem segurava sua mais recente ilustração; uma simples caricatura daquele que dominava seus sonhos. — A quantidade extravagante de imagens dessa pessoa é um tanto quanto assustadora... Diga-me garoto, ele é real?

Mark se remexera no estofado, claramente desconfortável com aquela pergunta. De certo modo ele sabia qual era a resposta certa para aquele tipo de pergunta. "Não, ele não é real". A pequena frase doera. Em seu âmago, aquilo soara de uma forma muito errada. Não ousaria dizer em voz alta.

— Defina real. — O timbre da voz se mantinha baixo. Fora quase um sussurrou. Desviou novamente os olhos enquanto esperava por sua resposta. Internamente, desejou que aquela sessão acabasse logo de uma vez.

— Real é tudo aquilo que existe. Tudo que é perceptível e palpável. — O psicólogo não entendera muito bem aonde o garoto queria chegar com aquilo, mas lhe respondeu da forma mais gentil que conseguira.

"Tudo que é perceptível e palpável". Mark sorrira.

—Então sim, senhor. Ele é real...


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