Capítulo II - Parte II - Fogo e sal

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O mistério estava resolvido. Mas não por completo. Anastasia Pierce era a moça cuja alma assombrava o navio. Não que eu acreditasse cegamente naquela história de assombrações. Mas não eram só histórias, eu vi com meus próprios olhos. Ninguém seria sagaz o bastante para pregar uma peça como aquela. Não podia ser só uma história. E é por isso que eu tinha que ir lá para investigar.

Peguei uma lanterna, mas não tive o cuidado de pegar um guarda-chuva para me proteger da garoa que insistia em cair do céu escuro. Precisaria enfrentar coisa pior que um resfriado naquela noite. Então me lembrei de quando fui ao navio e um misterioso rapaz aparecera para me salvar. Ele havia acertado a mulher com uma arma. Sal. Fui até a cozinha e apanhei um recipiente com o mineral que eu precisava. Saí para a praia, recebendo o vento úmido e pedindo para alguma força maior me tirar de lá com vida. Precisava acreditar nisso.

O navio estava atracado, o mastro levantado e a vela agitando com o vento e a chuva. A rampa que dava acesso ao interior do navio estava baixa, convidativa. Inflei os pulmões de ar e, pé ante pé, caminhei até a rampa, que rangia a cada passo dado. Tudo estava como antes, o salão, o carpete, as folhas caídas. Nada fora tocado. Exceto, é claro, pela porta da cabine, que havia sido aberta e manchada com sal. A luz da lanterna oscilou logo que peguei o caminho para os corredores. Agitei-a, tentando fazê-la funcionar, mas tudo que fez foi desligar completamente.

- Ótimo – Resmunguei, guardando a lanterna em um dos bolsos da jaqueta jeans. Já não teria muitas chances vendo o que aconteceria, agora totalmente no escuro, elas despencariam de vez. Mas não iria recuar. Não agora. Desci ao porão por uma escada sinuosa, com alguns degraus em falta, tomando cuidado para não pisar onde não deveria. As caixas de madeira e as vazias garrafas de vinho também estavam intactas, empilhadas nos cantos. Tentei abrir a porta ao lado, mas esta estava emperrada. Voltei à escada para subir ao convés do navio novamente, mas logo nos primeiros degraus, a escada desfez-se em pó e pedaços de madeira de séculos. Meu corpo veio ao chão seguido de um estrondo e um estalido de ossos se quebrando. Uma dor aguda invadiu minha perna e em um segundo eu já não a sentia. Havia quebrado o pé, e provavelmente algo mais.

Um segundo estrondo fez meu coração pular, temendo o pior. A porta que dava acesso à escada se fechou, trancando-me ali dentro. Naquele momento, pedi para que o misterioso rapaz fosse tão curioso quanto eu e aparecesse ali de novo, me salvasse de novo. Mas não se pode contar sempre com a sorte. Arrastei-me para perto de uma parede e segurei uma garrafa de vinha quebrada ao meio. Tateei o recipiente com sal que, com a queda, havia se desprendido de minha jaqueta. Peguei um punhado de sal, com as mãos em forma de concha, e fiz um círculo à minha volta, o mais amplo que meus braços podiam alcançar. Se o sal afastava realmente aquela mulher, aquilo iria impedir que ela chegasse perto o bastante para me machucar. Torcia para que minha teoria estivesse correta.

Ouvi algo parecido com o som de roedores caminhando pelas paredes e uma lâmpada, no alto de uma viga, acendeu e começou a piscar. Mau agouro. De repente, tudo parou e o porão ficou em completo silêncio novamente. Meu pé agora começava a inchar e choques percorriam os membros inferiores, agravando-se quando eu tentava realizar algum movimento, por menor que fosse. Foi quando eu vi, disfarçada entre as caixas e garrafas empilhadas, rindo, a mulher. O espírito. Arregalei os olhos, agarrando o sal e levando à altura do tórax, protegendo-o, como se fosse a arma mais letal do mundo. Porém, era tudo que eu tinha. A mulher, mostrando-se satisfeita por ver meu rosto assustado, aproximou-se do círculo de sal que me separava dela. Não flutuava como da última vez, tinha os pés no chão. Parecia existir, se não fosse por sua morte, naquele mesmo navio. Levantou o braço direito e alongou os dedos da mão em forma de garra, apontando para meu pescoço. Estava pronta para cometer assassinato, mas algo a impediu. A linha de sal. Suspirei, aliviada, por saber que aquilo deu certo. Mas a mulher não desistia, tentava de todo e qualquer jeito romper a barreira que existia entre eu e ela. Depois de muito lutar, sentou-se à minha frente, os olhos ainda queimando de ódio. Não entendi aquele gesto inusitado, nem confiaria nela, mas vi que mais do que eu estar cara a cara com um fantasma estava errado.

Anjos da Escuridão - A Primeira FaceOnde histórias criam vida. Descubra agora