Capítulo III - Em Chamas

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Girei a chave na fechadura, deixando que a porta se abrisse para eu entrar na casa. Tive o cuidado de não bater em nada enquanto rastejava em direção à escada que dava acesso ao primeiro andar. Ao alcançar o primeiro degrau, ouvi o som de algo sendo destravado e logo em seguida, a luz acendeu. Virei o rosto, temerosa que me descobrissem fora da cama a esse horário. Nesse estado. Primeiro, avistei os pés pálidos descalços e uma calça de lã clara e larga que caía sobre eles. Depois, uma blusa azul escura cobrindo o tórax largo. Os cabelos louros estavam bagunçados sobre os olhos castanhos inchados devido ao sono interrompido. O rosto comprido pertencia a meu padrasto, Henry Hawkes. Segurava uma arma na mão, apontada para o pé da escada, onde eu estava escorada entre a parede e o corrimão. Ele suspirou quando me viu, aliviando suas feições carrancudas e jogando a arma no sofá bege ao seu lado.

Depois de passado seu assombro, sua fisionomia voltou a apresentar fúria. Ele iria me dar mais um sermão. Outra briga infundada seria começada. Era tudo que eu não queria naquele momento. 

- Onde você estava até esse horário? – Perguntou ele, olhando-me dos pés à cabeça, assim como um médico examina um paciente, notando minhas roupas sujas e o pé machucado envolto no tecido negro da jaqueta do homem que me salvara. – E o que aconteceu com você?

- Desculpe, mas é uma longa história. – Disse, tentando me levantar do primeiro degrau da escada. Não queria dar explicações agora. Precisava cuidar daquele corte que causava dores nauseantes. A cabeça ainda rodava e minha visão continuava turva.

- Você não pode sair assim sem avisar a ninguém, Catharina. – Henry dizia, alterado. Sua voz estava embargada pelo sono, mas forte o suficiente para me afrontar. Anna e Luce foram acordadas pela voz de Henry e desceram a escada. Anna vestia uma camisola branca longa e um chinelo nos pés, os cabelos morenos estavam bagunçados e caíam sobre o rosto. Luce usava um pijama azul claro com desenhos em marrom, também de cabelos desajeitados e olhos inchados. Segurava na mão de Anna, minha mãe.

- Não preciso te dar satisfações – Disse sem pensar. Anna foi até mim, tentando me acalmar e perguntando o que tinha acontecido comigo. Agachou-se a meu lado e tirou o tecido que cobria meu tornozelo, mostrando o corte ensanguentado. Gemi de dor quando ela tentou limpá-lo. Acariciou meu rosto sujo enquanto tentava de qualquer jeito amenizar minha dor. Entre um gemido e outro, acrescentei para Henry: - Você não é meu pai. 

Henry bufou, surpreso com minha resposta, mas não demorou para respondê-la deslealmente.

- Seu pai está morto! – Gritou ele, o rosto vermelho. Levou as mãos à cabeça, suspirando, claramente arrependido de ter dito aquilo. Eu também lamentava por ter começado com tudo. A ida ao navio, a discussão. Mas por teimosia eu continuava. E por esse capricho meus olhos encheram-se de lágrimas, embaçando ainda mais minha visão. Deixei que elas rolassem por meu rosto sujo, cansado. Deixei um som sair de meu peito, um gemido, uma lamentação. Cedi aos braços finos que me seguravam com tanto carinho e preocupação, os braços de Anna. Esqueci-me da dor, da voz de Henry ecoando em meus ouvidos e da tristeza que ela me causara. Trouxe à tona boas lembranças e alguém que nunca mais havia voltado. 

Eric e eu estávamos no cais. Meu pai e eu de mãos dadas. Ele vestia uma roupa elegante, toda branca e azul. Seus cabelos pretos estavam cobertos por um chapéu azul escuro e seus olhos castanhos azulados brilhavam. Como éramos parecidos! Tinha na boca um sorriso animado.

- Tchau, filhinha. – Disse papai. Seu enorme navio branco o esperava para mais uma aventura em alto mar. Ele me pegou nos braços e me levantou do chão, rodopiando no ar. Beijou meu rosto repetidas vezes, deixando uma lágrima escapar por sua face bronzeada.

- Não chore, papai. – Eu dizia, enxugando suas lágrimas com o polegar.

- Você sabe que eu te amo, não é? – Ele acariciava meus cabelos pretos, apoiando-se nos joelhos para ficar à minha altura.

Anjos da Escuridão - A Primeira FaceOnde histórias criam vida. Descubra agora